domingo, 23 de setembro de 2018

Fukushima



Greg, Greg, Greg, o seu destino é três vezes traição. Nada se pode fazer a respeito. Está escrito e minha tarefa é apenas narrar. O autor dessa história sabe muito bem do começo, meio e fim. Mas o que interessa não é de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. O que interessa é a aventura. 
Greg pegou o metrô, pegou o ônibus, viajou 12 horas para encontrar o seu amor em Prata Dourada. Três paradas, três cervejas. Muito conscienciosa do direito dos outros, não quis chegar na casa de Diógenes durante a madrugada. Sentou-se na rodoviária e tomou mais três cervejas, até que desse 6 horas para aportar no endereço do seu amor.
Destino, que palavra misteriosa. Primeiro é preciso viver a aventura para sabê-lo. Só na vida de aventura pode-se encontrar verdadeiramente o amor.  Destino e necessidade, a combinação dos muitos nomes, governando o caminho e as sortes humanas. Cerveja, necessidade para suportar o tempo da espera e acalmar o ser para ir ao encontro do destino, o qual só pode ser narrado, não explicado.
Uma cerveja na cidade grande, três cerveja na estrada, três cervejas na chegada. Sete, o número da sorte de Greg. Sete, fim e começo, morte e vida. Greg estava calma, calma demais. Cochilou no bar da rodoviária de Prata Dourada, perdendo a noção das horas. Quando olhou o relógio passava das 7, resolvendo ir ao encontro com a roupa que viajou, deixando o vestido novo florido e decotado para depois.  Sem batom, sem vestido, sem salto alto, faria uma surpresa ao  amor.  Comprou buquê de copos de leite da florista, negra retinta, mãos rudes do labor camponês, bruto e belo contraste com a brancura densa das flores que floresciam à beira dos riachos nas redondezas úmidas de Prata Dourada.
Desceu  a rua correndo, não prestando atenção na paisagem que poderia apreciar  do alto do morro. Lá embaixo, adentrou na rua do amor que terminava na fresca mata verde onde ficava a casa de Diógenes.  Ela esperava encontra-lo regando o jardim ou tomando sol, ouvindo música bem alta, pois era sempre assim que ele contava nas cartas as suas auroras solitárias. Estranhamente silenciosa a casa, uma casa enorme, estranhamente enorme para quem mora sozinho. Apertou a campainha. O cachorro latiu e veio ao encontro de Greg, latindo e pulando nas suas pernas e arranhando seu corpo.
- Cão amado, que estranho furor.   Calma Teodosius ... Me diga, onde está nosso Di. Ele dorme, também perdeu a hora? Calma Teodosius. O que acontece com você meu cãozinho. É saudade? É saudade?   
Teodosius respondia com latidos estranho para os ouvidos de Greg que sabia bem o que é um cão, ela própria vivendo uma vida de cão. Ela avançou no jardim rumo à casa, Teodosius tentava impedir arranhando suas pernas. Na escada encontrou Diógenes de roupão. 
- O que você está fazendo aqui Greg?
- Uma surpresa, meu amor. Trouxe essas flores para você. 
- Lixo, Greg, joga essas flores no lixo.
 - Lixo, meu amor? Você não gosta mais de copos de leite?
- Não, não gosto. Por que você não me avisou que viria?
- Pensei que minha surpresa seria bem-vinda.
- Não, não é bem-vinda. Lixo. Você é um lixo. Lixo atômico é o que você é. A gente não sabe o que fazer desse lixo. Depositar no fundo, bem fundo da terra e asfaltar grosso por cima, nem assim ficamos livres do lixo tóxico que é você.
- Lixo tóxico? Não entendo isso. Nas últimas cartas tratamos do nosso casamento e você jurava amor eterno. O que acontece?
- Acontece que carta é só literatura. A vida é outra coisa.
- Vamos conversar lá dentro amor, você está nervoso. Vamos acalmar. 
-  Entra. O que há de se fazer?  Acabemos de uma vez com essa farsa.
Teodosius ofegante quis entrar com os dois pela porta da cozinha. Diógenes o chutou, impedindo seu acesso.    
Greg pôs a mão no coração ao ver seu retrato bem grande pregado na parede da sala. Da cozinha via, inacreditavelmente via, seu retrato entre as flores rabiscado de batom vermelho, furado e ferido. Escrito em letras grandes vermelhas: BAGULHO.  
Diógenes falava alto, gesticulava as mãos, parecia um professor irritado com seus alunos.
- Você tem que entender, Greg. O amor é imoral. Ele pula palavras, compromissos, escapa, não interessa mais nada. Você não me interessa.  Não me interessa mais. O único que ama você aqui é o cão pulguento.
Teodosius latia e arranhava a porta.
- Você ama outra mulher?
- Sim, amo outra mulher e estou vivendo com ela aqui nesse bordel.
- Bordel?
- Sim. Bordel. Você não percebeu sua tonta. Não presta atenção onde anda?
- Essa letra no meu retrato é dela?
- Sim, amaldiçoamos você Greg. Amaldiçoamos seu recato entre as flores.  Fizemos esse vodu para que você nunca aparecesse aqui. Mas você é uma cadela pulguenta inquieta e veio. Nem mesmo o vodu mata sua inquietude. Vá embora Greg.  Deixe eu e Rosa vivermos na santa paz  do nosso bordel.
- Rosa? Que Rosa?
- Rosa, a única Rosa, Greg. Afinal quantas Rosa você conhece? Por que eu diria Rosa para você que só conhece uma Rosa. 
- Ela não está em Tokio?
- Tokio é aqui. O nome do bordel é Tokio.
Greg abriu a porta. Seca, sem lágrimas, corpo gelado, boca sem palavras, cabeça sem pensamentos, desceu as escadas, desceu a rua, desceu ao inferno. Teodosius junto, agora em silêncio abanava o rabo e a seguia, seguia sem olhar para trás nunca mais.   Greg e Teodosius seguiam juntos no Absurdo do silêncio e do descolamento dos corpos da história. Um mundo sem tempo.  Atrás o fogo ardente consumia a mata, o jardim, a casa, os gases liberados pelo incêndio envenenavam Prata Dourada e todo seu entorno, com ameaças de uma catástrofe global pelas águas dos rios contaminadas e pelos ventos danosos.  
Os jornais da região informaram que nos escombros, os bombeiros da capital, que chegaram ao lugar quando o fogo já havia tudo consumido e  defumados os corpos, encontraram apenas resquícios de um papel queimado com algumas palavras que pareciam de uma carta e os restos queimados de um vestido florido.
Alhures, distante de Prata Dourada, numa cidade grande e sem metrô, rica de pobres, de nome Redenção, desciam da traseira suja de um caminhão uma mulher com o corpo ferido e um cachorro pulguento. O motorista do caminhão os deixou perto do cartório na periferia onde sabia ter um santo e velho burocrata que rebatizava os renegados da história com novos nomes. Assim nasceram Biela e Macróbio, ambos paridos do Nada.    
Depois de uns dias sem tempo e sem nada, pesquisando em silêncio com olhares atentos, Biela e Macróbio escolheram a calçada de um bar-restaurante, chamado Fome & Sede, frequentado pelos pobres trabalhadores de uma usina de aço. Ali instalaram uma precária banquinha com folhas de papel fino pautado e canetas. Na parede atrás da banquinha, um cartaz: “Saturnália – Aqui se escreve cartas de amor”.
E assim vivem Biela e Macróbio, trabalhando na calçada e dormindo numa barraca nos fundos do Fome & Sede, por gratidão de um pernambucano que é o proprietário do restaurante.   Analfabetos da região formam filas ao entardecer para encomendar as mais estranhas e irreais cartas de amor que Biela escreve por uns míseros trocados que alimentam  a ela e  Macróbio. Os clientes de Saturnália só não sabem que as cartas são  ditadas pelo cão através de um fio invisível que liga seu coração em chamas às mãos incendiárias da moça de olhos fulminantes  e fogo no rabo.   

Marta Rezende | economista, consultora em projetos e produções culturais.

Um cão anda pra luz


Um cachorro
crivado de carrapatos
se vê frustrado em sua tentativa
de ensinar alguma
humanidade aos homens
latir talvez seja mais fácil
a animalidade intempestiva
essência do humano
violência em sua forma mais pura
um arranhar de palavras nas portas
como garras que despedaçam
semanticamente as categorias
predatórias – posto que famintas
a perseguir o próprio rabo
e o homem é o melhor amigo de quem?
as patas delicadas desenterram
ossos e sucatas de
uma cultura em via de extinção
tanatocrata da fauna
da flora – da  memória
uivos – uivos
uma vez chegada a noite
seremos caçados
como animais
que nunca deixamos
de ser.

Luiz Carlos Quirino