Greg, Greg, Greg, o seu
destino é três vezes traição. Nada se pode fazer a respeito. Está escrito e
minha tarefa é apenas narrar. O autor dessa história sabe muito bem do começo,
meio e fim. Mas o que interessa não é de onde viemos, onde estamos e para onde
vamos. O que interessa é a aventura.
Greg pegou o metrô, pegou o
ônibus, viajou 12 horas para encontrar o seu amor em Prata Dourada. Três
paradas, três cervejas. Muito conscienciosa do direito dos outros, não quis
chegar na casa de Diógenes durante a madrugada. Sentou-se na rodoviária e tomou
mais três cervejas, até que desse 6 horas para aportar no endereço do seu amor.
Destino, que palavra
misteriosa. Primeiro é preciso viver a aventura para sabê-lo. Só na
vida de aventura pode-se encontrar verdadeiramente o amor. Destino e
necessidade, a combinação dos muitos nomes, governando o caminho e as sortes
humanas. Cerveja, necessidade para suportar o tempo da espera e acalmar o ser
para ir ao encontro do destino, o qual só pode ser narrado, não explicado.
Uma cerveja na cidade
grande, três cerveja na estrada, três cervejas na chegada. Sete, o número da
sorte de Greg. Sete, fim e começo, morte e vida. Greg estava calma, calma
demais. Cochilou no bar da rodoviária de Prata Dourada, perdendo a noção das
horas. Quando olhou o relógio passava das 7, resolvendo ir ao encontro com a
roupa que viajou, deixando o vestido novo florido e decotado para depois. Sem batom, sem vestido, sem salto alto, faria
uma surpresa ao amor. Comprou buquê de copos de leite da florista,
negra retinta, mãos rudes do labor camponês, bruto e belo contraste com a
brancura densa das flores que floresciam à beira dos riachos nas redondezas
úmidas de Prata Dourada.
Desceu a rua correndo, não prestando atenção na
paisagem que poderia apreciar do alto do
morro. Lá embaixo, adentrou na rua do amor que terminava na fresca mata verde
onde ficava a casa de Diógenes. Ela
esperava encontra-lo regando o jardim ou tomando sol, ouvindo música bem alta,
pois era sempre assim que ele contava nas cartas as suas auroras solitárias.
Estranhamente silenciosa a casa, uma casa enorme, estranhamente enorme para
quem mora sozinho. Apertou a campainha. O cachorro latiu e veio ao encontro de
Greg, latindo e pulando nas suas pernas e arranhando seu corpo.
- Cão amado, que estranho
furor. Calma Teodosius ... Me diga,
onde está nosso Di. Ele dorme, também perdeu a hora? Calma Teodosius. O que
acontece com você meu cãozinho. É saudade? É saudade?
Teodosius respondia com
latidos estranho para os ouvidos de Greg que sabia bem o que é um cão, ela
própria vivendo uma vida de cão. Ela avançou no jardim rumo à casa, Teodosius
tentava impedir arranhando suas pernas. Na escada encontrou Diógenes de
roupão.
- O que você está fazendo
aqui Greg?
- Uma surpresa, meu amor.
Trouxe essas flores para você.
- Lixo, Greg, joga essas
flores no lixo.
- Lixo, meu amor? Você não gosta mais de copos
de leite?
- Não, não gosto. Por que
você não me avisou que viria?
- Pensei que minha surpresa
seria bem-vinda.
- Não, não é bem-vinda.
Lixo. Você é um lixo. Lixo atômico é o que você é. A gente não sabe o que fazer
desse lixo. Depositar no fundo, bem fundo da terra e asfaltar grosso por cima,
nem assim ficamos livres do lixo tóxico que é você.
- Lixo tóxico? Não entendo
isso. Nas últimas cartas tratamos do nosso casamento e você jurava amor eterno.
O que acontece?
- Acontece que carta é só
literatura. A vida é outra coisa.
- Vamos conversar lá dentro
amor, você está nervoso. Vamos acalmar.
- Entra. O que há de se fazer? Acabemos de uma vez com essa farsa.
Teodosius ofegante quis
entrar com os dois pela porta da cozinha. Diógenes o chutou, impedindo seu
acesso.
Greg pôs a mão no coração
ao ver seu retrato bem grande pregado na parede da sala. Da cozinha via,
inacreditavelmente via, seu retrato entre as flores rabiscado de batom vermelho,
furado e ferido. Escrito em letras grandes vermelhas: BAGULHO.
Diógenes falava alto,
gesticulava as mãos, parecia um professor irritado com seus alunos.
- Você tem que entender,
Greg. O amor é imoral. Ele pula palavras, compromissos, escapa, não interessa
mais nada. Você não me interessa. Não me
interessa mais. O único que ama você aqui é o cão pulguento.
Teodosius latia e arranhava
a porta.
- Você ama outra mulher?
- Sim, amo outra mulher e
estou vivendo com ela aqui nesse bordel.
- Bordel?
- Sim. Bordel. Você não
percebeu sua tonta. Não presta atenção onde anda?
- Essa letra no meu retrato
é dela?
- Sim, amaldiçoamos você
Greg. Amaldiçoamos seu recato entre as flores.
Fizemos esse vodu para que você nunca aparecesse aqui. Mas você é uma
cadela pulguenta inquieta e veio. Nem mesmo o vodu mata sua inquietude. Vá
embora Greg. Deixe eu e Rosa vivermos na
santa paz do nosso bordel.
- Rosa? Que Rosa?
- Rosa, a única Rosa, Greg.
Afinal quantas Rosa você conhece? Por que eu diria Rosa para você que só
conhece uma Rosa.
- Ela não está em Tokio?
- Tokio é aqui. O nome do
bordel é Tokio.
Greg abriu a porta. Seca,
sem lágrimas, corpo gelado, boca sem palavras, cabeça sem pensamentos, desceu
as escadas, desceu a rua, desceu ao inferno. Teodosius junto, agora em silêncio
abanava o rabo e a seguia, seguia sem olhar para trás nunca mais. Greg e Teodosius seguiam juntos no Absurdo
do silêncio e do descolamento dos corpos da história. Um mundo sem tempo. Atrás o fogo ardente consumia a mata, o
jardim, a casa, os gases liberados pelo incêndio envenenavam Prata Dourada e todo
seu entorno, com ameaças de uma catástrofe global pelas águas dos rios
contaminadas e pelos ventos danosos.
Os jornais da região
informaram que nos escombros, os bombeiros da capital, que chegaram ao lugar
quando o fogo já havia tudo consumido e
defumados os corpos, encontraram apenas resquícios de um papel queimado
com algumas palavras que pareciam de uma carta e os restos queimados de um
vestido florido.
Alhures, distante de Prata
Dourada, numa cidade grande e sem metrô, rica de pobres, de nome Redenção,
desciam da traseira suja de um caminhão uma mulher com o corpo ferido e um
cachorro pulguento. O motorista do caminhão os deixou perto do cartório na
periferia onde sabia ter um santo e velho burocrata que rebatizava os renegados
da história com novos nomes. Assim nasceram Biela e Macróbio, ambos paridos do
Nada.
Depois de uns dias sem
tempo e sem nada, pesquisando em silêncio com olhares atentos, Biela e Macróbio
escolheram a calçada de um bar-restaurante, chamado Fome & Sede,
frequentado pelos pobres trabalhadores de uma usina de aço. Ali instalaram uma
precária banquinha com folhas de papel fino pautado e canetas. Na parede atrás
da banquinha, um cartaz: “Saturnália – Aqui se escreve cartas de amor”.
E assim vivem Biela e
Macróbio, trabalhando na calçada e dormindo numa barraca nos fundos do Fome
& Sede, por gratidão de um pernambucano que é o proprietário do restaurante. Analfabetos da região formam filas ao
entardecer para encomendar as mais estranhas e irreais cartas de amor que Biela
escreve por uns míseros trocados que alimentam
a ela e Macróbio. Os clientes de
Saturnália só não sabem que as cartas são
ditadas pelo cão através de um fio invisível que liga seu coração em
chamas às mãos incendiárias da moça de olhos fulminantes e fogo no rabo.
Marta Rezende | economista, consultora em projetos e produções culturais.
Marta Rezende | economista, consultora em projetos e produções culturais.