quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020


e a epidemia já estava instalada
desde o início na ponta dos dedos
dos mercadores da morte e da tristeza
nos olhos turvos de seus fanáticos
____________e entusiastas
e o futuro passou a ser apenas um detalhe
indistinto do passado glorioso e delirante
como um sintoma persistente
e eu era apenas mais um

a loucura fez suas vítimas aos montes
as pôs em quarentena e compartiu
desconfiança generalizada na terra de Caim
quem viu as armas as máquinas as formações
pensou tratar-se de um desfile ou de um
abatedouro – lugar de ódio e obediência
e eu era apenas mais um

qual é a vacina para a megalomania
tão mais medíocre quanto mais doce
pequeno animalzinho tirânico
a ser sacrificado à nação dos idiotas
o velho burguês tirava água do rio
numa lata enferrujada e cortava
sua língua nas rebarbas de seu fala
afiada de tétano e incompreensão
e eu era apenas mais um

estatísticas mentirosas de neon
maravilhavam os pets presidenciais
que se engalfinhavam atrás das migalhas
da mesa e compartilhavam suas pulgas
em estado terminal infinito [e de graça]
espalhando seu vírus em pequenas ampolas
e eu era apenas mais um
meio vivo quase vivo


luiz carlos quirino

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020


O seco eixo do rio
alaga sobre mim uma lacuna
abrindo caminho entre a fábula
e o peso do concreto
lâmina de fogo que executa
a contagem regressiva
para minha morte onde
enfim encontro a casa vazia
tempo simultâneo em que
ainda nem nasci e sou
trazido à luz continuamente

Nas coisas assentadas
sob a claridade
é inútil indagar sentido
visto que nossa infâmia envolta
num casulo de megalomania
coincide com o mundo
em ferrugem e calúnia

Numa tristeza estival
grunhem palavras cotidianas
que transcrevo com linotipos
incandescentes em minha pele
a história dos vencidos
do limbo à carne viva

Seria preciso manter os fósforos secos
e raspar as páginas dos livros
rente à raiz esperar a floração
a volta do verde denso
idêntico à ferrugem dos rios
e ao tétano das facas
com que ferimos a terra
e depositamos a origem


luiz carlos quirino

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020


Como o soalho das casas incendiadas
ou o animal carnívoro

Como as crianças desparecidas
ou a farpa debaixo da unha

Como o grão no asfalto
ou a ferida silenciosa

Como a esperança do proletário
ou o tempo não interrompido

Como a enchente à noite
ou os dentes adocicados

Como a foice contra a pedra
ou o cego na esquina

Como a cidade que se extingue
ou os humilhados que exaltam

Como a eletricidade das folhas
ou os homens ruminando motores

Como as mães que morrem
ou o amor transfigurado


luiz carlos quirino

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020


À noite –
quando a cidade se aquieta
se nos mantivermos atentos
talvez consigamos escutar o rumor
das cores que estalam
como uma casa calma
ou sol nas plantas ao meio-dia
me alegra dormir ao som do azul
sus-
      sur-
            ra-
                 do
que se instaura
quando fecho os olhos
tanto que até me distraio da morte
e se derreto um sibilo alaranjado
consigo preencher os buracos
de meu impronunciável nome

À noite –
quando estou só –
mas às vezes gostaria
de  poder compartilhar
este pequeno milagre amoroso
inscrito em todas as coisas
menosprezadas
pelos homens sérios
porque o mundo é tímido
e se retrai diante de nossa brutalidade
o que fica à mostra é apenas um rastro
uma alucinação na ponta dos dedos
se silencio é escuta
e tudo que escrevo
é meu próprio corpo
às braçadas à nascente
um gole do mundo
antes do afogamento


luiz carlos quirino

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020







Aos dezoito graus a vida decai
de maneira imperceptível e mortal
e os foguetes não estão prontos
ainda
do exílio
Ruy Belo observa a praia
– eu nem sequer nasci
                         mas já sou pobre
e sonho com coisas tão pequenas
                             e inalcançáveis
e contemplo o vazio como se visse o futuro
o ainda por vir que talvez nem chegue
porquanto as grandes geleiras
se desprendem do continente
e a floresta queima como os livros
na casa invadida pela enchente
à noite levitamos – enquanto
nossas coisas vão embora
o século vinte e um
converteu a vida em nostalgia
para que nunca cheguemos a ser adultos
porque o tempo consome
                      sua própria cabeça
abaixo dos dezoito graus



luiz carlos quirino

domingo, 9 de fevereiro de 2020


O próprio desespero perde
o homem apagado pelo dia
sem crenças ou nascimento
de vísceras arruinadas pelo
frio da vingança e a notícia
da expiação impraticável

limiar registrado no corpo
na delinquência dos gestos
e na metástase que avança
até pude treinar a maneira
de adulterar o rosto às segundas
de coca aço e velocidade

luiz carlos quirino

sábado, 1 de fevereiro de 2020


Se eu perseguisse uma meta
naufragaria meus dias atrás
                                       de uma máquina
e seria considerado um cidadão exemplar
distribuiria gentilezas fugazes
e faria mandinga contra o mau-olhado

mesmo ninguém invejando o homem
que enfileira palavras numa folha
e constrói inúteis habitações onde
ninguém deseja morar

se eu fosse um grande lobo
devoraria o pastor que
conduz sua ovelhas ao abismo
e satisfaz seu sadismo através
do balido amedrontado dos
que despencam

por isso ando só pela terra
pilotando a bicicleta roubada de Jarry
e afundando no caudaloso absinto
dos livros
e seus córregos de Babel
entre cogito e delírio

eu sou um náufrago no cotidiano
e nado oceano adentro para
onde os animais catastróficos
enfim descansam
longe dos cargueiros da morte
e cantos de estrogênio

e são autotrepanações como palavras
distribuídas ao corpo docente do caos
e aos cães raivosos da província
portadores de sonhos avaros
cunilíngua como política de Estado

luiz carlos quirino