domingo, 28 de fevereiro de 2021

 

Béla Tarr e seus cachorros encharcados
precipitam as ruínas de um homem
inútil se ele se esconde
atrás de um muro
e a câmera o
segue
 
em
close-up

nada
pop
 
depois de ter perdido o sapato
embarrando as meias brancas  
num tipo de dançando
na chuva do fim
do mundo
 
deformado entre vapores
de álcool e descrença –
niilismo em agitação
 
correndo com os cachorros
numa bela tarde em que
a chuva cai

luiz carlos quirino 
 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

 



uma língua de fogo em cada casa
e para cada mito de origem –
eternidade numa fração de segundos
sob a nostalgia do que não se mostra
 
uma casa de fogo em cada origem
e para cada mito uma língua –
tempo sego atrás da raiz noturna
fissurando o que é imperativo e nu
 
uma origem de fogo em cada língua
e para cada mito uma casa –
uma aliança de luz para cada dedo
enterrado nas pedras que brotam
 
um mito de língua em cada origem
e para cada fogo uma casa –
na chuva de um dia inesquecível
incendiando as roupas no varal


luiz carlos quirino
 
 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 

um aeronauta despenca do segundo andar para a morte pela terceira vez. seu primeiro andar o levara a lugares inimagináveis até que perdeu o passo e se virou para o outro lado na cama. desde então teve de reaprender a flutuar – um pé de cada vez: um pé depois outro, um pé depois outro. às vezes metendo as mãos pelos pés. porque se apoiar em duas patas configuraria ser bípede [e não trípede como a maioria], essa posição tão estranha aos homens [e a algumas crianças] quanto voar o é aos aeronautas mais experimentados. como ver Deus todos os domingos na feira até se dar conta de que os domingos não existem e são exatamente iguais à segunda ou à quinta-feira. e se a feira não existe toda fruta e verdura também pode ser Deus ou aeronauta. a não ser que você [não sendo fruta ou verdura] seja homem, nuvem ou qualquer objeto mais leve que o ar.       

domingo, 21 de fevereiro de 2021

o limo colonizando
as paredes do rosto
os insetos famintos
livro adentro
 
roendo axiomas
dispostos de forma
ridícula
 
mnemotécnica
para distrair
o absurdo
 
buracos na neblina da página
numa terrível manhã invernal
em que o chacal atola as patas
nas horas e apodrece
 
e trina feito um homem
conformado
 
a ocupação dos livros é escorar portas
a condição dos vivos é rabiscar notas
 
ilegíveis ao tocar o chão
– lâmina finíssima
do lençol no varal
 

luiz carlos quirino 

 

 

 

 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

 




retomo a intervenção
dos dedos –
             nós fantasmas
sobre a ferida –
a pulsação da nervura
a ardência do real
 
persigo a imprecisão
de cada endereço
tão baixo que nem escuto
o rompimento de meus dentes
e o choque da língua
na espessura
do banal
 
esqueço a intervenção
e retorno a uma casa diferente
a cada vez
 
modulo a voz conforme
a extensão do enigma
dirigido a mim mesmo
                     no futuro
 
grão a grão
nos azulejos da boca
aberta
 
e assombrada no tempo
de água cristalina na

concha
              da mão


luiz carlos quirino
 
 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

 



é fácil transportar uma casa
através do espaço e do tempo
mais difícil é mover meu corpo
um milímetro – adestrado
à espera e ao cumprimento
da tarefa de ter fé
 
enquanto a manada afunda
o caminho barrento – afundo
minhas pálpebras no concreto
entre a parede e o ilegível
 
sob a casa que carrego
nas costas – de olhos fechados
guiado pelo rangido dos minutos
que se chocam contra portão
sem tramela
 
cuja lassidão desespera
o animal lento – de corpo pesado
do tamanho de uma casa

luiz carlos quirino