Como tem acontecido, toda noite no último mês, hoje mais uma vez, em
determinada hora da madrugada, através da parede fina que divide os
apartamentos, começo a ouvir meu vizinho arrastando móveis. Ou pelo menos
emitir sons do que parece ser um arrastar de mesas, camas ou sofás. Tenho de
acordar às seis horas para trabalhar, já são três e vinte e cinco e ainda não
consegui pregar o olho. Ou melhor, como na maioria das vezes em que o cara
resolve circular ruidosamente dentro do seu apartamento, atravesso a noite num
estado de liminaridade, que não pode ser considerado nem de sono nem de
vigília. Sei lá, um tipo de sonho acordado, como se a realidade estivesse se
dissolvendo num tipo de bruma ou um véu, muito fino, me impedisse de tocar nas
coisas de fato. Depois passo o dia me arrastando, cansado. O que faz com que as
horas do dia pareçam a continuidade do sonho da noite anterior. Zonzeira total.
Por isso quando amanhece acabo sempre me esquecendo de ir falar com ele, e a
coisa se repete noite após noite.
As consequências das noites maldormidas, entretanto, são muito concretas.
Outro dia peguei o ônibus errado quando ia para o trabalho. Só me dei conta da
burrada quando ele dobrou numa rua estranha. Mas já era tarde demais. Até eu
conseguir pegar a condução correta e retomar a rota, já havia se passado mais
de uma hora. Consequência: acabei chegando quase ao meio dia e levando aquele
esporro do meu supervisor. Até acordei um pouco – momentaneamente. Não demorou
muito pra eu voltar a zanzar feito um zumbi pelos corredores da firma. Os dias
confusos se amontoam. E, quando volto pra casa, as coisas não têm sido
melhores.
Ainda não sei o nome o nome do meu vizinho. Nunca nem cruzei com ele
pelos corredores, na verdade. Na real, eu pouco falo ou mantenho algum contato
com ele ou com qualquer outro morador do meu prédio. Saio pela manhã, bem cedo,
passo o dia todo fora e só volto pra casa à noite. Não tenho interesse em fazer
amizade com ninguém. O que eu queria era pelo menos conseguir ter a porra de
uma noite de sono depois de um dia cansativo de trabalho. Em geral um dia de
merda – tendo de bater as metas inalcançáveis impostas pelos psicopatas do
setor administrativo, que não descolam aquelas bundonas gordas das cadeiras o
dia inteiro enquanto corremos de um lado para o outro, feito baratas tontas.
Mais tontas ainda por se contentarem com as migalhas que nos fazem correr. Ok,
tudo bem, quanto a isso eu até já estou acostumado, já desenvolvi uma carapaça,
tipo a de uma barata mesmo, que é a que me convém. O que tem me tirado do sério,
mais do que de costume, é chegar na minha casa e não conseguir descansar
direito por causa de um sujeito que nem conheço, porque ele resolve praticar um
Feng Shui satânico a noite
inteira, noite após noite. Ah! Vá pra puta que pariu!
Agora são quatro e quarenta sete. O arrastar de móveis continua num
intervalo mais ou menos regular de tempo. O problema é que quando parece que
acabou, e estou quase pegando no sono, recomeça novamente, me arrastando pra
estaca zero. Semana passada, num dia em que eu estava de folga, e a maioria dos
outros moradores do condomínio estava trabalhando, até tentei dar uma
bisbilhotada pela janela do apartamento do arrasta móveis. Achei tudo muito
esquisito. Tinha uma cortina meio aberta numa das janelas, era razoavelmente
alta, mas subi numa lixeira e consegui dar uma espiadinha lá dentro. Pelo menos
o cômodo que consegui ver parecia vazio, sem nenhuma mobília, nenhum obejeto. Até
falei com o zelador e perguntei se ele conhecia o morador do duzentos e cinco.
Só que quando ele me disse que, pelo menos pelo que ele sabia, não havia nenhum
morador em tal apartamento, fiquei sem entender nada. Tenho certeza de que tem
alguém ali. Senão não estaria até agora acordado.
Continuo me virando na cama, de um lado pro outro. Talvez a irritação e a
falta de sono estejam me deixando louco, não sei não, porque posso jurar que
agora também comecei a escutar um barulho no andar de cima. Um negócio
irritante parecido com alguém mexendo uma cadeira, tipo quando a gente tenta se
acomodar na mesa. As coisas agora se tornaram um pouquinho mais malignas,
beirando o sadismo mesmo. Alguém arrasta alguma coisa no apartamento ao lado,
tento pensar em outra coisa – contar carneirinhos, jogar uma partida de xadrez
mental, tapar a cabeça com o travesseiro, perna pra dentro do edredom, perna
pra fora, copo d’água, chazinho de camomila, leitura de um livro bem chato, ida
ao banheiro –, daí quando estou quase apagando, começa o arrastar no andar de
cima, que agora tenho certeza de que tá acontecendo.
Cinco e vinte e um! A escuridão noturna – boa pra dormir, caso não se
seja interrompido – já começa a perder força. Nem sei se realmente não consegui
dormir ou se não estou sonhando que não consigo dormir. Pode ser que daqui a
pouco eu acorde revigorado e descubra que na verdade ninguém mora encostado à
minha parede ou acima da cabeça. Seria ótimo acordar numa casa. Melhor ainda,
numa fazendo, ser despertado pelo mugido de uma vaga ou pelo cacarejo das
galinhas. Vou ficar bem quietinho aqui e torcer para que esteja sonhando. Quer
dizer, sonhando não, sendo atormentado por um pesadelo! Só posso estar dentro
de um pesadelo que só acaba com os primeiros raios de sol. Não pode ser! Juro
que estou ouvindo mais um arrastar de móveis, agora um pouco mais longínquo.
Parece que estou em meio a um concerto de música atonal regido pelo próprio
Lúcifer. Ou meus vizinhos devem ser meio que uns Schoenbergs de uma empresa de mudanças que não termina o trabalho nunca. Mudança
em looping. Como dormir com um him, rom, guiz, tac, tac, a noite inteira, que
encerra aqui e começa lá, como se estivessem respondendo uns aos outros?!
Enfim, após mais uma noite de
filme de terror, saio de meu apartamento para trabalhar. Desço pelas escadas
mesmo, como costumo fazer, já que moro no segundo andar. Antes de chegar à rua,
encontro o zelador, que mora no mesmo prédio, ele está lendo o jornal, com uma
aparência jovial e descansada, de quem teve uma ótima noite de sono. Então
pergunto a ele sobre a noite anterior, se ele também ouviu a barulheira. Pra
minha surpresa ele me responde, com um sorriso no rosto e certa desconfiança,
dizendo que não escutou nada, que dormiu como um bebê e que inclusive fazia
muito tempo que não dormia tão bem. Ainda reiterou o que tinha me dito alguns
dias antes. Segundo ele, meu apartamento estava relativamente isolado, uma vez
que não havia outros moradores no meu andar, nem no de cima. Por isso era
improvável que o “arrastar de móveis” (nesta parte, em especial, ele esboçou um
irritante sorrisinho no canto da boca), se é que aconteceu mesmo, tenha origem
na casa dos vizinhos – que, segundo ele, não tenho.
Agora eu mesmo já estou sentindo
um pouco de vergonha. Pode ser coisa da minha cabeça. E eu aqui importunando os
vizinhos. Estes, sim, que existem. Quer dizer, não sei, eu acho. O mais
provável é que eu esteja sendo vítima de algum tipo de perturbação mental, de
alguma coisa que se manifesta com mais intensidade à noite, alguma variante do
terror noturno, aquele quando o sujeito está acordado, mas não consegue se
mexer. Já vi uma reportagem sobre isso na televisão. Hum! Verdade! Acho que
pode bem ser algo do tipo.
Um pouco humilhado, sem saber
muito bem onde enfiar a cara, me despeço do zelador. Evito olhar muito em seu
rosto. Quando ganho a rua, dou uma última passada de vista por aquelas janelas
centenas de janelas do grande bloco de apartamentos onde moro. A maioria ainda
fechada naquela hora da manhã. As abertas, no entanto, que permitem que se veja
o interior das habitações, exibem uma movimentação pra lá de curiosa. Grupos de
pessoas transportando os móveis de um apartamento para outro, como se tivessem
muita urgência, como se estivessem fugindo de alguma coisa. Alguns moradores
arrastam sozinhos mesas, geladeiras e outros tipos de mobília, saem por uma
porta e entram em outra. Pelo menos é o que consigo ver, pelas janelas abertas,
daqui debaixo. Na do apartamento ao lado do meu, que está com a cortina puxada,
consigo identificar a figura do zelador e de mais algumas pessoas que não
conheço arrastando com muita violência os móveis. É a última cena a que assisto
antes de subir no ônibus rumo a mais um dia de trabalho.