quinta-feira, 30 de janeiro de 2020


Os famintos arrastam suas carcaças
até os shopping centers
e dançam com a cabeça do presidente
da república decapitada
transmitem a festa através de seus
smartphones das lojas em escombros

incendeiam as mandalas dos
fala-mansa-universitários
e cagam sobre seus vegetais orgânicos
fazem churrasco com os lulus das
madames petrificadas de botox
que circulam seu jogging pelos corredores
e precipitam para a morte os consumidores
como kamikazes alucinados

todos esperavam a Revolução
agora que ela escancarou seus dentes
requerem o restabelecimento
da ordem em três vias
com firma reconhecida em cartório

mas os tabelionatos também
viraram cinzas
e os amotinados
treinam alvo
nas bundas gordas
dos cidadãos de bem
dos acadêmicos
dos sindicalistas
dos reaças dos
empreendedores
dos escritores
dos comunistas
e demais farsantes
progressistamente
distribuem seus coices
ostentando suas patadas
ao som do pancadão...


luiz carlos quirino

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020


É preciso traduzir as rasuras
muito mais do que o texto
lê-las em voz alta
e extrair dos borrões
o núcleo movediço do signi-
                                  [ficado

transformar
seu sumo
numa ética

entropia permanente da
vida que urra – chafurdando o lodo
inutilizando páginas
e páginas de
imaculada
Civilidade


luiz carlos quirino

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020


Quietude nos livros
tornados mudos pelo cansaço
de não haver
uma única definição possível
tamanha a brutalidade do vivido

à volta o hiperbólico das unhas
que tentam conter o grão de areia
sem peso ou carne – onde o todo
é insolação e movimento
de palavras enfileiradas
reproduzindo o rumor
de sua aglomeração

arrastadas continuamente
as páginas apodrecem e
as palavras transmutam-se
              em metafísica oca
e se embaralham germinando
a gramática da imensidão selvagem

quantas línguas são necessárias
para se alcançar a ideia de língua ou
prever o passado ou ensaiar a verdade

e quando os livros todos
forem convertidos em sopro
restará apenas a pequena utopia
de quem não tem nada

além de toda a ortografia dos
que acampam sob viadutos
de poder pronunciar ou ser
com a paixão do animal
                       devorado
ou da fabricação do
algoritmo da vida

luiz carlos quirino

domingo, 26 de janeiro de 2020





dizem que os bichos no abatedouro
pressentem a iminência da própria morte
– isso talvez explique esta persistente
                                           melancolia

inscrita
em minha brutal incredulidade
ao perceber os olhares passivos
diante dos bretes que se erguem

da pastagem tranquila
dos animais que oferecem
de modo gentil a sua carne

rogai por nós
rogai por nós – ó Açougueiro
ecoaram as últimas palavras
antes da extinção  

[...]




luiz carlos quirino

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020


Não reparo e já anoitece
e crescem as sombras encobrindo a afeição
e quase não reconheço os objetos
que consomem meus dedos

aleijados
aleijada

toda essa tristeza talvez seja
apenas uma experiência estética nula
– um tipo de pobreza
que espuma no canto da boca
e elege imagens infames

Anoitece e os homens maquinam
__________________________uma extensa chacina
e a falsificação do que resta de gentil
é apenas uma sombra que nos envolve
a nós e aos objetos mortificados
entre o polegar e o indicador

não nos tornamos alegres
antes mais ignóbeis
como a espuma que pinga da boca
e nos faz esperar a manhã
como quem nasce sem reparar
e se agarra à beleza
mesmo sabendo de sua inutilidade

Agora escuto urros a noite toda
[de portas trancadas]
mas as frestas são impermeáveis à esperança
e nossas carnes triviais
ofertadas enquanto produzimos
as travas das portas sempre escancaradas

Não reparo e já é noite


luiz carlos quirino

terça-feira, 21 de janeiro de 2020


As mãos
seguram firme
          um grito
impedindo a fuga da caça
ou o soterramento da razão
não conseguem
entretanto iluminar
pequenos espaços fechados
nos abertos
somam sua luz
à claridade solar e
antes do resfriamento
ainda conseguem
soletrar algumas sílabas
enquanto o principal lhes escapa
                 entre unhas
pressionadas na carne

Mais importante seria nos atermos
a quem ilumina a fala pequena –
durante muito tempo minha voz
foi uma faísca alimentada pelos
córregos enlameados até que eu
conseguisse trazer alguma ardên-
cia à tona

Antes foi preciso que me acostumasse
                                  ao pântano
e ao desespero e me mantivesse
das ervas daninhas
             e fizesse a luz
ser escutada sem ferir
a fauna –  
cortar minhas garras
deixando para trás
a primeira natureza

Meu nome agora já
pode ser pronunciado
enquanto queima

luiz carlos quirino

domingo, 19 de janeiro de 2020


Éramos abandonados desde o início
[atentando contra palavras]
e toda essa algazarra
nada mais era do que o eco
                        de
nossa própria voz

E o calor era apenas o prenúncio
de uma interminável frente fria
e essa chuva nada mais
do que a febre
                        de
nossa própria voz

Enquanto caíamos
aquele cadáver também fazia-se nosso
com o peso do mundo nas coisas
                                 precipitadas  
e aquele guri também éramos nós
condenados a errar apenas
o cômodo erro
                        de
nossa própria voz

Adulterando a própria assinatura
e enlouquecendo todas as manhãs
com o rosto colado ao espelho
e um dia nos demos conta
através
                         de
nossa própria voz

Da extinção das goiabeiras
das mães e de algum
                    resíduo do real

Talvez os fantasmas existissem
desde o início – nada mais
                            do que
fantasmas por toda parte
arrastando suas correntes
assombrados de si mesmos
                        de
suas que eram iguais a
nossa própria voz
própria
voz

luiz carlos quirino

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020


Tenho ensaiado a vida
através de pequenos furtos
principalmente de sepulcros à noite
tudo o que é meu já foi de outros
inclusive meu nome – quando cantado
ou proferido como adágio –
significa carne exposta

Tenho trabalhado numa fala
morosa – como um evento discreto
alheio à estatística
              realizado na
rugosidade das mãos – em seu tremor
embora possua dedos delicados
e perfeitamente inúteis

Tenho perdido muito tempo
aprendendo a reconhecer os ladrões
ampliando o procedimento
                          dos caídos



luiz carlos quirino

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Transporte coletivo



Será que amamos o morto?
Ou choramos pela brutalidade da nossa condição?

João Gilberto Noll

Uma freada inesperada, e os passageiros embolam-se uns por cima dos outros. “Cuidado aí, motorista! Acha que tá carregando gado?!” O calor é insuportável dentro do 611, na Assis Brasil, avenida cercada por prédios e com poucas árvores. A irritação dos passageiros segue uma linha ascendente, por causa do amontoamento, por causa do abafamento... “Vai descer, motora! Olha a senhora com criança no colo!” [...] por causa do motorista que se esquece de parar pra que os passageiros desçam. Dia azarento! Por que eu tinha de pegar justamente este barril de pólvora rumo ao centro?! O melhor a se fazer talvez fosse tentar não pensar no calor, não pensar no trânsito trancado, nas sinaleiras que parecem conspirar contra minha pressa. Como já tenho certa experiência em transportes coletivos lotados, desenvolvi hábitos que ajudam a manter alguma calma durante tais viagens – um deles é o seguinte: movido por uma força que foge ao meu controle, não consigo não prestar atenção às conversas que pipocam à minha volta, e num transporte que é coletivo – onde as pessoas se veem obrigadas a ultrapassar o limite da distância minimamente digna entre os corpos –, a maioria das conversas também o são. Outro costume é o de tentar descobrir o que as pessoas estão lendo durante a viagem, nas raras ocasiões em que presencio a cena de alguém com um livro nas mãos; geralmente é uma decepção, mas ainda assim penso que é melhor ler um livro ruim do que não ler nada. O que me faz lembrar de uma viagem, neste mesmo ônibus, alguns dias atrás. Na ocasião, para minha satisfação, mais ou menos perto de meu campo de visão havia um homem sentado (que sortudo!) com um livro aberto em suas mãos. Um senhor de certa jovialidade, vestindo jeans, tênis e casaco preto da Nike. Por alguns instantes tive a impressão de conhecê-lo de algum lugar, só não sabia muito bem de onde, nem se de fato o conhecia. Mas isso talvez fosse irrelevante. Empreendi então uma desengonçada ginástica com o objetivo de esticar o pescoço, em meio a tantos corpos espremidos, na tentativa de uma visão mais clara do livro em questão. É preciso dizer que nesses dias de lotação máxima, sempre alguém resolve ainda carregar algum objeto de grande porte que acaba ocupando espaço considerável onde já não cabe mais nada. Esse dia não contrariava a regra – em meio às imensas sacolas de uma mulher muito magra, magreza essa que não condizia com a força necessária para a sustentação de tal peso, e um jovem bastante gordo, de quase dois metros de altura, eu tentava me esgueirar, para ver o que o sujeito sentado estava lendo. Numa jogada de sorte, no entanto, auxiliado por um solavanco entre os muitos que se seguiam quase ininterruptamente, consegui me aproximar um pouquinho mais do sujeito e numa passada de olhos pude ler a seguinte frase, marcada com caneta fosforescente verde, em seu livro: “deslizei debaixo do mar todo esperançoso até reencontrar à tona a mesmice do mundo dos homens”. A passagem me pareceu obscura, ainda que poética, e não forneceu nenhuma pista a respeito do título do livro ou sobre seu tema. Porém, como nessa confusão consegui um lugar perto do sujeito, por ali fiquei, sondando discretamente o objeto em suas mãos. Em algum momento ele fechou o livro e pude ver a capa. Agora a frase parecia fazer algum sentido – tratava-se do livro do João Gilberto Noll: A fúria do corpo. Fiquei bastante surpreso, ao mesmo tempo alegre, por ainda lerem o Noll, ainda mais num ônibus. Mas eu ainda estava cismado com aquele sujeito. De onde será que eu o conhecia? Talvez fosse alguém famoso. Mas que tipo de famoso anda de ônibus, sem ar condicionado e entupido de gente? Não sei não. Eu puxava pela memória e nada. Disfarçadamente, com o canto do olho, analisava aquele rosto que me parecia tão familiar. Cabelos apenas começando a se acinzentar, apesar da idade, bem cortados, óculos... A senhora sentada ao seu lado lhe pergunta as horas, e a resposta vem em castelhano. Neste instante, percebi. Era óbvio, como não havia me dado conta antes. Contra todas as probabilidades, aquele sujeito era o escritor César Aira, só podia ser, tinha certeza de que era!
Caaabuumm!
Todas as pessoas que se encontravam às minhas costas começaram a se projetar em minha direção, ao mesmo tempo, o veículo fazia uma curva acentuada e se inclinava num iminente tombamento – uma cena que parecia se desenrolar em câmera lenta. Sentia meu corpo ser esmagado por outros corpos – pela mulher magrela e suas sacolas, pelo gigante e por outros passageiros em quem não havia reparado. O peso era imenso, ao meu lado outras pessoas também suportavam por cima delas o peso mortífero, principalmente as que estavam sentadas à minha frente. Ainda tive tempo de lembrar do sujeito que julguei ser o escritor argentino. No lugar onde se encontrava sentado pude ver apenas o livro que estivera em suas mãos e o par de óculos que em seguida foram soterrados pelos corpos, assim como meu corpo também o foi... Soube depois, através de uma televisão instalada no quarto do hospital, que a frente do ônibus havia sido cortada por um ciclista, e o motorista na tentativa de evitar um atropelamento acabara causando um acidente ainda maior. Segundo a reportagem, veiculada pelo telejornal noturno, por sorte ninguém perdera a vida, mas como o veículo estava excessivamente cheio muitas pessoas acabaram ficando feridas. Nenhuma palavra sobre qualquer escritor argentino. Agora – dezoito de abril de dois mil e doze, dois dias depois do acidente – dentro do ônibus, chegando ao centro, penso no caráter insólito dessa história, que poderia muito bem fazer parte de algum livro do próprio Aira. Tenho de descer, pelo menos o martírio do calor chega ao fim. Antes de me dirigir ao local de meu compromisso acho que dá tempo de passar num boteco, comer um pastel e tomar um café, ainda tenho uns trinta minutos, e a reunião é daqui uns quarenta e cinco. Na televisão está passando um noticiário local, mas de repente algo me parece fora do lugar – estão falando a respeito de um festival literário porto-alegrense, e uma das atrações do evento é justamento o escritor César Aira, que chegou à cidade dois dias atrás.  Alguma coisa parece não se encaixar nessa história. Agora a jornalista entrevista o próprio escritor, ele está dizendo que, além da participação no evento, está na cidade para conhecer pessoalmente o escritor João Gilberto Noll e que sua estadia por aqui já o inspirou a começar a escrever um conto que se passa em Porto Alegre e que possui o nome provisório de Transporte coletivo, sobre um escritor argentino que se envolve num acidente dentro de um ônibus ao se dirigir a um encontro com o escritor João Gilberto Noll... Puta que pariu! Esta porra de café tá muito quente, até queimei meus beiços! Puta que pariu, Aira! Puta que pariu! Peraí, o que é aquilo vindo do céu?! Parece um lápis gigante com uma borracha na ponta! Puta que...



luiz quirino

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020


No pátio os soldados
sincronizam os passos e as baionetas
até já podemos sentir nossas unhas
formigarem e algo como
um amargo na língua

faz
tempo
as crianças
não são as donas da rua
e cada um armazena só
o que lhe é mais carro
– o tempo se afunila
e as esperanças se aquartelam

Dias belicosos para falarmos
de coisas banais
[o cotidiano já é artigo de luxo]
e os pai adestram seus filhos
para a crucificação
para a sola das botas e
a coluna ereta

E não temos vergonha
de desejar o mal
amparados pelo álibi da verdade
[tenho me tornado desprezível
diante do congresso dos vencedores]  
enquanto os pilares ruem e
perdemos nossos lares

O proletário ideal reside
na concisão de suas ambições
livres porém comedidas
laboriosas em sua
própria inutilidade


luiz quirino



Uma vida toda
que abraçasse o equívoco
diáfano – ao mesmo tempo
a calma insuportável
de quem aproveitasse a vista
enquanto despenca
sem tentar se agarrar
aos cacos do acaso
existindo em sua máxima saturação
no limite – aniquilamento

Diante da perenidade – uma vida
escuta vazia
assentada sobre a vertigem
da suspeita – acanhado calor de uma
alegria
zinha

Uma vida – campo de girassóis
que resistem pelo sol
como intuísse o pintor
se mantivesse as orelhas coladas
ao rumor dos gadgets
– convulsãozinha –
ou dança solitária que se
inclina ao sol
que seca presa ao chão
piadinha do universo
risada sem fim

luiz quirino

sábado, 11 de janeiro de 2020

Tempo germinado
num broto hesitante
diante do fardo de ser verde
de ser tempo acabado
e estender suas raízes
como ponteiros

Quantas vezes é preciso morrer
para entender o movimento –
a intensidade e o significado das cores
a duração do laranja ou do lilás
a dureza do vermelho ou do azul
o escoadouro dos muros em Basquiat
sulcando os minutos
do caule à seiva temporal

E se a fertilidade fosse apenas índice
do porvir – das direções
em raízes e tempo
em ramos e cores
dissolvendo-se
em líquido gástrico
voltando à terra
e desenraizando

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

...




De uma faísca indelével
à intensidade febril
dos olhos inflamados –
espiralados como
a visão de quem nasce
toda a existência condensada
na pequena luz
tremeluzente
soprada pelo
espírito
em
com
bus
tão
.
.
.

A
cor
do
ardente da
divindade ferida
pela torrente de chamas
[a quem pertence o corpo]
em círculos concêntricos
até o intenso do núcleo
até o duvidoso início
e ponto de dissipação
dos recusados – desterro
e beatitude inesgotáveis  


luiz qurino

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

a migração das árvores








A fúria do silêncio
e a discreta migração das árvores
                            e tudo o mais
longe dos sentidos dos homens
e a voragem
das coisas pelas quais somos consumidos
deglutidos sistematicamente
por uma proliferação
de pequenos mistérios

Os piores pesadelos ocorrem
nas horas de sol mais alto
de luminosidade perturbadora
quando somos assombrados pela nitidez
e mesmo nosso rosto já é outro
cada ruga nos consome
dobrando-se até o limite
em que a identidade
se desfaz e se refaz

Em movimento
em degradação e vida

luiz quirino

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

e se jorge não se chama borges nem luis





Numa das realidades
enosadas na realidade
jorge não se chama borges
                        nem luis
nem nunca teve contato com nenhuma
biblioteca ou livro
puxa uma carroça [de tração humana]
recolhendo o que foi descartado
no centro de porto alegre quem sabe
a coisa mais concretada
o perde em seu próprio labirinto
mais vivo ou menos vivido
depende
e se ele nunca existiu
não há o que se lamentar – então
seus olhos intactos registram o mundo
que se apresenta
em toda sua violência
de exuberante demanda
da ficção


luiz quirino

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020



Quem não conhece aquela raça
a dos que definham aos olhos de todos
enquanto arrastam a indignidade
que ilustra certa propriedade do “real”
           – certa resistência –
impossibilidade de sobrevivência
fabular ou mesmo lírica
a não ser a golpes de picareta
                                e mãos calosas
[meus irmãos morreram tão jovens
já conhecendo o equívoco e
os sobreviventes curvados]
estamos dispersos
enfraquecidos pelas miragens
tão objetivas que nos atordoam
nos impelem a nos envenenarmos
                       gradativamente
tentando aplacar a tristeza
somos a raça que se dissolve
enquanto espera
o que nos salve ou escravize
enquanto se reproduz
não escreverão nossa história
nem traçarão nossa genealogia
demasiado vexatória
circulamos entre a multidão
como fantasmas concretos
embora translúcidos
e deixamos perplexos os céticos
e os entusiastas do progresso
e seu desprezo disfarçado
nos contamina ainda
somos a raça que definha
aos olhos dos saudáveis
certa propriedade do real
que ameaça sua sobrevivência
bruma que se dissipa
levando consigo
toda a paisagem

 luiz quirino