domingo, 23 de dezembro de 2018

A mensagem do dinheiro



Uma sintaxe em elipse
com a qual já não se pudesse escrever
um texto como em 1964
qual salto mortal
poder ainda se pode
mas é toda uma torção da língua
que trabalha contra sua própria vitalidade
delírio de sol escaldante –
os olhos tremem a voz gagueja
tanques nas ruas
inconjugáveis com atabaques
e com a mensagem do dinheiro
sem destinatário e cristalina
pés assustados esquivam-se
do inseto sem cabeça em giro
corpo gramatizado – ABNT das formas
e usos dos prazeres autóctones
sob obscuras penitências
autoantropofágicos – arco e
flecha contra o canhão e a cruz
o último brasileiro originário
ardeu como os mendigos
enrolado à bandeira
vermelha desde sempre
vermelho-sangue por toda a parte
sobretudo nas cédulas
quanta surpresa ao nos depararmos
com a impossibilidade de decodificação
de enunciado tão direto
dos homens que
limpam o cu com dinheiro
depois se calam
e censuram o beijo grego
[dizem que os bigodes dos generais
possuem mau cheiro terrível
não mais insuportável do que
o dos empreendedores
seculares ou divinos]
ou o culto ao enxame
o xamã masca junto à fogueira
– ritual destinado a todos
o que equivale a ninguém
ou à língua secreta ou morta
retornando transubstanciada em muro
florescendo vertiginosa
guardando a casa vazia


LUIZ CARLOS QUIRINO

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018






que fracasso estonteante este nosso
mal disfarçado nas fotos das férias
nas declarações públicas de amor
na conjugação equivocada dos verbos
sempre muna praia
[mais tosca que paradisíaca]
ou qualquer paradeiro exótico
aos centenas de amigos imateriais
o oco do corpo à mostra
os dentes postiços em segredo
que fracasso o cheiro do carro novo
a aquisição da casa própria
ao fundo um insistente eco
um fantasma cruza a frente do obturador
e por um segundo a verdade
quase pode ser entrevista
fantasma que de tão patético
nos faz rir

LUIZ CARLOS QUIRINO

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Ulisses




os sinais dos dias
tornam-se desesperadores
nas ruas – enlouquecem os homens
seus olhos esvaziam-se de si
quando se apercebem
já não sabem mais voltar
há tanta crueldade concentrada
num espaço tão estreito
como o de uma existência
as mães o sabem e dormem pouco
os objetos perdem-se igualmente
aos seres e aos projéteis – apenas
o grau de abandono os diferencia
no mundo da vertigem
é preciso acostumar os olhos de vereda
ao vazio do caminho
luminoso que corta o céu escuro
aos restos nas beiradas
ao odor erosivo do temor
às mãos que já não
sabem segurar o lápis
moldadas conforme o
movimento do gatilho
nado na enxurrada devastadora
daquilo que combinamos chamar
                                                     morada
Ulisses é o dono da rua
[um pouco de sorte e não será morto hoje]
nós seremos
e já não temos de onde regressar
ou regressamos interminavelmente
o que dá no mesmo
o que tanto faz


 LUIZ CARLOS QUIRINO

domingo, 16 de dezembro de 2018

Transubstanciação menor
















suspenso entre o tempo
que ainda não chegou
e o que já se perdeu
um pouco adiantado
sempre
um pouco ainda
inimaginado
ferida –
entre a vontade de dizer
e a impossibilidade
do choro

a violência dos homens
contaminou cada palavra
o último vocábulo pacifista
foi desperdiçado
na tentativa de comunicar
aos sequestradores a tempestade
que intempestivamente aponta
– em fazê-los desistir

até que meu
nome seja esquecido
pelos homens do futuro
ou queimado
uma após outra as expectativas
se desfarão entre as páginas
enquanto nos matamos
uns aos outros
antes – no entanto
falaremos uma vez mais
e despedaçaremos o fio de voz
que resta contra o muro frio


LUIZ CARLOS QUIRINO