quinta-feira, 23 de julho de 2020

silenciavam as marés
do início ao fim
resistiam como
alucinação
vagarosa

ou saliva
onde deveriam
ser lançados os dados
viciados na ruína

a face marcada desde antes –
desistir já seria uma vitória

mas sou lançado
            continuamente
na invisível correnteza
imitação de afogamento
quando os braços traçam
círculos no ar e remam

jogo que não pode ser dito
sem rasura dos dedos
se acontece de eu
estar vazio
como hoje

imitação
do corpo em terra nova
renovação do barro

no limite do rompimento
a ausência tenta produzir-se
e perder-se
– dizer-se
se confunde
ao mutismo ao elidir
o que é dito numa
miragem


luiz carlos quirino 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

thoth

Céu estrelado. Um leopardo espreita a criança que brinca no pátio sob a luz anêmica de uma lanterna. Nunca saberíamos se é dia ou noite se não olhássemos o relógio e constatássemos se tratar das duas da tarde. O animal faz movimentos silenciosos e lânguidos. Ninguém percebe sua presença. A criança está sozinha, nos fundos de sua casa, brincando com um baldinho e uma pazinha de plástico colorido. Um vento morno nos dá pistas de que talvez estejamos no verão. Ao mesmo tempo, quem sabe também tenha levado até muito longe o cheiro de carne jovem. Até o felino. Faz quinze minutos mais ou menos que ele pulou a cerca de madeira e observa por detrás das plantas murchas do jardim. A criança parece ter uns cinco anos e, como seria de se esperar nesta idade, está concentrada com muita seriedade em sua brincadeira. O animal se aproxima do outro pequenos animal – o filhote dos humanos – e o cheira. A criança acha engraçado e acaricia seu pelo macio. O leopardo a lambe com sua espessa e áspera língua. A criança sente cócegas e dá gargalhadas. As risadas chamam a atenção da mãe. Ela vem até a porta dos fundos para ver o motivo da graça. Quando se depara com a cena fica paralisada. Por sorte seu marido estava por perto e consegue chamá-lo através de sinais. O homem se aproxima da porta bruscamente. O leopardo, que continuava lambendo o rosto da criança, agora abocanha sua cabeça que emiti um som parecido com o de quando mordemos uma maçã. O pai, atordoado, pega uma pá e vai em direção ao animal que pula a cerca, carregando a criança em direção ao bosque de árvores secas a alguns metros da casa. O céu continua estrelado apesar da fome dos animais.     

terça-feira, 14 de julho de 2020

thoth

Trovões explodem, lá fora, num intervalo que diminui num compasso geometricamente ordenado. Regularidade quebrada por uma algazarra que me atrai até a janela. Abro uma fresta na cortina, e uma claridade parece se aproximar depressa pela rua quase totalmente às escuras. Mas aparentemente não se trata dos trovões. Não demora muito para que consiga identificar um homem coberto por enormes chamas. Atrás dele, um cortejo de crianças maltrapilhas que correm, pulam e atiram objetos. Algumas estão descalças, outras com sapatos ou roupas maiores que seus corpos. Correm e de tempos e tempos puxam suas calças para cima a fim de não as perder. Quando passam em frente a minha casa fecho um pouco mais a cortina para que não me vejam. Mas o homem que arde olha em minha direção, e tenho a impressão de que por alguns segundos pode me ver escondido atrás da barreira de tecido escuro. No entanto continua sua corrida até quase a esquina que fica a uns duzentos metros do ponto onde me encontro. Então cai. As crianças à sua volta fazem uma festa danada. Dançam ao redor da fogueira humana e cantam: “Burn baby burn. Burn that mother down. Burn baby burn. Disco inferno”. Ou algo parecido. Festa encerrada pela chuva que começa a cair com violência. Cada criança corre numa direção diferente. Restando apenas um amontoado de carvão preto no meio da rua. E ali ele ficou por dois ou três dias sem incomodar ou ser incomodado.  

segunda-feira, 6 de julho de 2020

thoth

Todos parecem ter se acostumado aos gritos, a qualquer hora, em meio ao escuro de uma noite que insiste em ficar por muito mais tempo do que o tolerável. Agora, por exemplo, são três da tarde, e as anêmicas lâmpadas da casa me fazem forçar os olhos para que consiga prosseguir com minha leitura. Em determinados momentos eles lacrimejam tanto que tenho de fazer uma pausa para não ficar cego de vez. A capacidade do governo de fornecer eletricidade tem sido colocada à prova, já que a demanda aumentou consideravelmente desde que a escuridão chegou à cidade, por isso a luz sempre em meia fase, sempre um tanto insuficiente. Há pouco ouvi o que parecia ser o grito de um homem pedindo socorro. No início ligava para polícia, mas logo descobri que era inútil. Eles nunca apareciam. Então acabei desistindo. Todos têm medo, por isso preferem fazer de conta que não estão escutando nada. Só deus sabe o que se passa atrás de cada cortina cerrada. Pior certamente é a rua que de uns tempos pra cá está se tornando cada vez mais selvagem. Tenho a impressão de que a falta de luz, do sol propriamente dito, está afetando de maneira bastante negativa o comportamento dos indivíduos. Outro dia uma mulher ateou fogo num homem desconhecido. A polícia, como por milagre, apareceu nessa vez. A mulher alegou que o sujeito tinha roubado sua vaga no estacionamento. Então ela foi até um posto de gasolina, encheu um pequeno galão de combustível. Sua intenção era a de atear fogo no carro do sujeito, mas ao chegar lá ele estava entrando no veículo. Já estava se preparando para ir embora. Ela poderia ter deixado pra lá. Mas não. Antes que ele pudesse reagir, ela já havia o encharcado de gasolina. Ele tentou correr. Ela riscou um fósforo e atirou em sua direção. O fogo seguiu o rastro da gasolina e alcançou o sujeito. Quando a polícia chegou o corpo estava preto, carbonizado, envolto numa fumaça meio azulada. A mulher estava ao volante e dizia que iria esperar o corpo e o carro serem removidos para que ela pudesse estacionar.  


domingo, 5 de julho de 2020

thoth

Por detrás de minha cortina observo o vizinho colocando seu lixo para fora. Mal consegue se manter de pé com o peso do enorme saco de plástico preto... Dizem que participou de alguma das guerras. Não sei direito qual delas. Não importa. Já que hoje é apenas um ser que se distingue pela fragilidade, visível em seus braços flácidos e nas veias azuladas e salientes. O nariz e as orelhas enormes lembram bifes pendurados em seu rosto como adornos grotescos oferecidos pelo tempo. Ele vive sozinho na casa outrora  imponente, hoje apenas velha. Parece que após ter matado alguns homens na guerra passou o restante de sua vida, antes da aposentadoria, ensinando literatura a adolescentes numa escola pública... Mal consegue se manter de pé. Ainda mais numa rua tão escura e sem iluminação. Alguns poucos pontos fazem-se visíveis, muito precariamente, graças à luz que escapa de uma janela ou outra. Ele joga o saco na calçada. Não me fica claro se por impaciência, raiva ou pelo peso. Sua expressão, entretanto, é uma mistura de cansaço e indiferença. Então estou inclinado a supor que o peso fora demais para seus braços magros. Com a queda o saco se abriu parcialmente. O velho parece não se importar. Olha em direção à minha casa e, apesar da escuridão, tenho certeza de que me viu entre as cortinas. Sua porta bate com uma força incompatível com sua figura. Fico mais alguns minutos observando a rua, já que meus olhos tiveram tempo de se acostumarem à penumbra. Um cão magricelo se aproxima do lixo e aproveita o fato do saco estar meio aberto. Enfia o focinho à procura de algum alimento. Dá umas cheiradas e puxa algo de dentro. O objeto cai de sua boca. Não sei se por causa da escuridão ou da distância encontro, mas posso jurar que o que o cachorro abocanhou dentro do lixo do velho era um dedo, parecido com uma salsicha arrochada. Ele o pega novamente. Sai saltitando em direção ao beco e desaparece.            


sexta-feira, 3 de julho de 2020

mais rente ao couro

a lâmina raspa as escamas

para que eu possa me ajustar

à nova pele

 

de novo

 

e outra vez o corpo

coberto de rachaduras

na cabeça o diadema de ervas

ruins e nunca mais

 

o ouro

 

apenas a visão noturna

das fraturas por onde

passo no escuro

 

ou testo

nas ruas despovoadas

meu esquecimento

 

[...]

 

na maré vazante sonhei

com a possibilidade de travessia

junto aos peixes e os deuses

num aquário

 

sufocamos rente ao vidro

muito mais mudos

 

e se nadássemos

com os pés ao contrário

para que lado iríamos

ou

nadaríamos em círculos

rente às bordas

 

e a curvatura de nossas costas

denunciaria a tentativa de fuga

e as escamas denunciariam

o pássaro que se afoga



luiz carlos quirino 

quarta-feira, 1 de julho de 2020

thoth

A cidade já estava às escuras há mais ou menos duas semanas. Eu acho. Não saberia dizer ao certo. Lembro-me apenas de que aqueles dias pareciam estar correndo de uma maneira muito mais veloz do que o habitual. E quando digo que a cidade estava às escuras quero dizer que durante todo aquele período o sol não apareceu nem um segundo sequer. Os especialistas suspeitavam de que tinha algo a ver com certa anomalia relacionada à posição da lua e dos polos terrestres e com um ângulo desfavorável que fazia com que apenas um pequeno ponto, de algumas centenas de quilômetros, não fosse atingido pela luz solar. E quando digo que o tempo parecia correr de uma forma muito mais veloz do que o habitual quero dizer que os acontecimentos desencadeados por tal anomalia foram responsáveis, em grande medida, pela vertigem que se seguiu. Já que não demorou muito para que a relação aberrante entre a terra e seu satélite natural refletisse no comportamento dos habitantes da cidade. Pelo menos foi o que me pareceu.