quinta-feira, 23 de julho de 2020
quarta-feira, 15 de julho de 2020
thoth
terça-feira, 14 de julho de 2020
thoth
segunda-feira, 6 de julho de 2020
thoth
Todos parecem ter se acostumado aos gritos, a qualquer hora, em meio ao escuro de uma noite que insiste em ficar por muito mais tempo do que o tolerável. Agora, por exemplo, são três da tarde, e as anêmicas lâmpadas da casa me fazem forçar os olhos para que consiga prosseguir com minha leitura. Em determinados momentos eles lacrimejam tanto que tenho de fazer uma pausa para não ficar cego de vez. A capacidade do governo de fornecer eletricidade tem sido colocada à prova, já que a demanda aumentou consideravelmente desde que a escuridão chegou à cidade, por isso a luz sempre em meia fase, sempre um tanto insuficiente. Há pouco ouvi o que parecia ser o grito de um homem pedindo socorro. No início ligava para polícia, mas logo descobri que era inútil. Eles nunca apareciam. Então acabei desistindo. Todos têm medo, por isso preferem fazer de conta que não estão escutando nada. Só deus sabe o que se passa atrás de cada cortina cerrada. Pior certamente é a rua que de uns tempos pra cá está se tornando cada vez mais selvagem. Tenho a impressão de que a falta de luz, do sol propriamente dito, está afetando de maneira bastante negativa o comportamento dos indivíduos. Outro dia uma mulher ateou fogo num homem desconhecido. A polícia, como por milagre, apareceu nessa vez. A mulher alegou que o sujeito tinha roubado sua vaga no estacionamento. Então ela foi até um posto de gasolina, encheu um pequeno galão de combustível. Sua intenção era a de atear fogo no carro do sujeito, mas ao chegar lá ele estava entrando no veículo. Já estava se preparando para ir embora. Ela poderia ter deixado pra lá. Mas não. Antes que ele pudesse reagir, ela já havia o encharcado de gasolina. Ele tentou correr. Ela riscou um fósforo e atirou em sua direção. O fogo seguiu o rastro da gasolina e alcançou o sujeito. Quando a polícia chegou o corpo estava preto, carbonizado, envolto numa fumaça meio azulada. A mulher estava ao volante e dizia que iria esperar o corpo e o carro serem removidos para que ela pudesse estacionar.
domingo, 5 de julho de 2020
thoth
Por detrás de minha cortina observo o vizinho colocando seu lixo para fora. Mal consegue se manter de pé com o peso do enorme saco de plástico preto... Dizem que participou de alguma das guerras. Não sei direito qual delas. Não importa. Já que hoje é apenas um ser que se distingue pela fragilidade, visível em seus braços flácidos e nas veias azuladas e salientes. O nariz e as orelhas enormes lembram bifes pendurados em seu rosto como adornos grotescos oferecidos pelo tempo. Ele vive sozinho na casa outrora imponente, hoje apenas velha. Parece que após ter matado alguns homens na guerra passou o restante de sua vida, antes da aposentadoria, ensinando literatura a adolescentes numa escola pública... Mal consegue se manter de pé. Ainda mais numa rua tão escura e sem iluminação. Alguns poucos pontos fazem-se visíveis, muito precariamente, graças à luz que escapa de uma janela ou outra. Ele joga o saco na calçada. Não me fica claro se por impaciência, raiva ou pelo peso. Sua expressão, entretanto, é uma mistura de cansaço e indiferença. Então estou inclinado a supor que o peso fora demais para seus braços magros. Com a queda o saco se abriu parcialmente. O velho parece não se importar. Olha em direção à minha casa e, apesar da escuridão, tenho certeza de que me viu entre as cortinas. Sua porta bate com uma força incompatível com sua figura. Fico mais alguns minutos observando a rua, já que meus olhos tiveram tempo de se acostumarem à penumbra. Um cão magricelo se aproxima do lixo e aproveita o fato do saco estar meio aberto. Enfia o focinho à procura de algum alimento. Dá umas cheiradas e puxa algo de dentro. O objeto cai de sua boca. Não sei se por causa da escuridão ou da distância encontro, mas posso jurar que o que o cachorro abocanhou dentro do lixo do velho era um dedo, parecido com uma salsicha arrochada. Ele o pega novamente. Sai saltitando em direção ao beco e desaparece.
sexta-feira, 3 de julho de 2020
mais rente ao couro
a lâmina raspa as escamas
para que eu possa me ajustar
à nova pele
de novo
e outra vez o corpo
coberto de rachaduras
na cabeça o diadema de ervas
ruins e nunca mais
o ouro
apenas a visão noturna
das fraturas por onde
passo no escuro
ou testo
nas ruas despovoadas
meu esquecimento
[...]
na maré vazante sonhei
com a possibilidade de travessia
junto aos peixes e os deuses
num aquário
sufocamos rente ao vidro
muito mais mudos
e se nadássemos
com os pés ao contrário
para que lado iríamos
ou
nadaríamos em círculos
rente às bordas
e a curvatura de nossas costas
denunciaria a tentativa de fuga
e as escamas denunciariam
o pássaro que se afoga