domingo, 22 de julho de 2018




Agora
que a única alegria possível
apresenta-se como desânimo incurável
pintamos o rosto com cores berrantes
por baixo
apenas a degradante
pele silenciosa
a cidade são só esquinas
à espera de que o corpo inercial
cruze suas ruas sem nome
até o logradouro total
lugar aonde nunca chegaremos
escondemos os olhos e usamos
as mãos de forma degradante
por questão de sobrevivência
estamos sempre
um pouco mais mortos ao amanhecer
à noite já sacrificamos quase tudo
então vestimos nossa máscara funerária
e esperamos novamente o recomeço
um mergulho no abismo do cotidiano
de palavras insuficientes
de trabalho produtivo e alienante
de casas tomadas por objetos inúteis
que trocamos por nosso tempo
tempo de vida
                            irrecuperável
e fingimos acreditar no futuro
enquanto a vida produz sua morte
– o trabalho produz sua pobreza.


Luiz Carlos Quirino

sábado, 14 de julho de 2018

Quando um cão encontra um homem perdido


Se os fantasmas vagam
silenciosos pelas ruas
é porque a justiça paira
também ela transformada
em poeira de esquecimento
ouvimos gritos à noite
e o corpo convulsiona de medo
agora que a amizade
é pesada numa balança
e já não nos lembramos do essencial
e as crianças tornaram-se insuportáveis
porque nos lembram a morte
praticada diariamente

às vezes um cão
encontra um homem perdido
e lhe lambe os olhos
então ele descobre o seu lugar
e enlouquece de felicidade –
é preciso perder a razão sempre
que a desesperança pavimente o caminho
e amar contra o mundo
esse amor não correspondido
é preciso – no entanto – que o cão
encontre o homem perdido.

Luiz Carlos Quirino





domingo, 8 de julho de 2018


Tamanha brutalidade da beleza
molda-se impossivelmente
conforme a resistência da retina
capaz de cegar os mais sensíveis
há aqueles que a perseguem – ainda assim
até a loucura ou o extermínio
da perfeição à violência gratuita
seu encanto em movimento ininterrupto
perturba a terra e a calmaria dos fluidos
bordô nas bordas – como ferida
artéria da fúria quando a única
solução possível é aquela
que também nos aniquila
tormenta que já desponta no horizonte
Adonai da crueldade manifesta
em pirâmides construídas sobre o sangue
de escravos aos milhares – como moscas
verborragia dos que agonizam maravilhados
sob os pés do Deus-sádico
ou sob as botas do Führer
pairando sobre a paranoia:
a arte-inútil limita-se à vida
e os passos descalços cruzam a fogueira
ardente – até sobrar apenas a queimadura.


Luiz Carlos Quirino

domingo, 1 de julho de 2018

Eu me sento e observo lá fora


Eu me sento e observo lá fora todas as tristezas do mundo,
toda a opressão e a vergonha;
Eu ouço o soluço convulsivo e secreto dos jovens, angustiados
consigo mesmos, arrependidos de seus atos;
Eu vejo a mãe maltratada por seus filhos, morrendo, na marginalidade,
negligenciada, magra e desesperada;
Eu vejo a esposa maltratada por seu marido, vejo o ardiloso
sedutor de jovens;
Eu percebo o rancor do ciúme e do amor não correspondido,
tentando ser escondidos – Eu tenho estas visões da terra;
Eu vejo o funcionamento da batalha, da pestilência, da tirania,
vejo mártires e prisioneiros;
Eu observo a fome no mar – observo os marinheiros arremessando
os que serão mortos para preservar a vida dos demais;
Eu observo os desprezos e as degradações lançados, por pessoas arrogantes,
sobre os trabalhadores e os pobres, sobre os negros e seus semelhantes;
Todos estes – toda a mediocridade e agonia sem fim e eu sentado
olhando para fora;
Vejo, escuto e estou em silêncio.

Walt Whitman
(Tradução: Luiz Carlos Quirino)