quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

 

Três fantasmas vagam por entre os escombros, três feixes de luz como uma espécie de eco que reverbera nas coisas que possuem volume ou que pelo menos parecem possuir. O sol lá no alto transforma tudo em miragem e engana a visão. Por isso a diferença entre o existente e o inexistente é mínima, reside no deixar-se tocar.

Encobertos por essa fantasmagoria, três fantasmas cavam na areia resplandecente ao meio dia enquanto na única construção habitada um homem inventado sonha com o destino da humanidade remanescente. Ele não suspeita das miragens nem dos fantasmas que acompanham do lado de fora seu sono.

 

FANTASMA 1

Dia após dia tentamos desenterrar cidades inteiras abandonadas pelos fazedores de mundos. E até conseguimos localizar suas camas, porém estão sempre vazias.  

 

FANTASMA 2

Nunca perdemos a esperança de que tenha restado alguma coisa intacta após as tempestades sucessivas.

 

FANTASMA 3

Tampouco descobrimos de que imaginação saiu o homem que sonha o destino de todos os outros.  

 

FANTASMA 2

Talvez devêssemos desistir. Porque cavar na matéria onírica faz com que despareçamos um pouco mais a cada vez. Desde que começamos, o dia tem ficado mais longo. Quase já não escurece.

 

Os três fantasmas largam suas pás feitas de noite e contemplam o buraco por eles aberto voltar a se fechar. Sua luz é insuportável.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

 

Um rapaz de uns vinte e poucos anos circula pelos corredores do supermercado num horário de pouco movimento. Empurra um carrinho vazio, tira uma mercadoria ou outra da prateleira e analisa a composição, confere o preço, porém acaba não ficando com nada. O segurança já se deu conta da movimentação estranha e o acompanha de longe, tentando não se fazer notar. O jovem, após alguns minutos do que perece mais um passeio, ajeita um pacote de papel higiênico e um frasco de xampu no centro do carrinho e continua. Ele acredita não estar sendo observado, no entanto o segurança conseguiu perceber a movimentação rápida da camiseta encobrindo alguma coisa.   

Adamastor leva uma vida absolutamente banal: trabalha de carteira assinada, recebe um salário insuficiente para cobrir qualquer necessidade que extrapole o mínimo necessário à sobrevivência. Está casado há quinze anos com uma garota (agora jovem senhora) que conheceu no curso de maquiagem funerária. Ofício que nunca chegou a exercer, tampouco Marta, sua esposa. Já no segundo ano de relacionamento vieram os gêmeos, desde então Adamastor se vira como pode. Conjuntura que o levou a aceitar o emprego de guardinha de supermercado. Guardinha, é assim mesmo que ele se refere, com certo desprezo, à atividade a que fora obrigado a se submeter.

Faz mais ou menos três horas que os jornais noticiaram um tipo estranho de neblina, meio avermelhada e densa quase como areia. Ninguém ainda conseguiu descobrir de onde vem nem sua composição. O fato é que a cidade aos poucos começa a ter suas formas encobertas. Algumas escolas já suspenderam as aulas. O preço de alguns alimentos, de alguns itens de higiene, de alguns tipos de medicamentos e das corridas de Uber eleva-se à medida que o mistério aumenta e que as teorias conspiratórias tomam de assalto as redes sociais.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

 

À noite os sonâmbulos ganham as ruas, sejam eles reais ou imaginários. O eco de passos agora sem dono reverbera nos raios da lua, no jorro sangrento que ilumina os caminhos por onde passei antes de ser apagado. À noite, somente à noite, os sonâmbulos ganham as ruas porque os seres de existência precária tornam-se ainda mais anêmicos durante o dia. Aqui onde o corvo perdeu sua cor, e suas penas são pequenos resmungos, palavrórios de uma conjuração contra tudo o que possui peso. 

Das histórias contadas por minha mãe um pequeno mundo parece tentar extrair forças e se equilibrar nas quatro patas. [Ela sempre repetia que é preciso ter fé naquilo que insiste e que os incrédulos projetam sua sombra sobre os ramos quando ainda são frágeis.] O vento varre a poeira de cima de um pequeno livro cujo título já não pode ser lido, porque seus caracteres foram impressos com tinta vocálica.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

 

Por entre as ruínas, sibilam as vozes daquilo que sobrou depois da passagem dos humanos. Uma série de entidades que de tão discretas parecem quase nem tocar o chão ao se movimentarem. Como se não possuíssem volume ou peso e se comunicassem através do olhar e das pequenas alterações em sua respiração. Se houvesse alguém para ver, diria que elas pegam carona na sombra das nuvens.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

 Daquele par de óculos partido ao meio restou apenas a metade esquerda cuja lente rachada projeta cinco raios de sol em direção às folhas secas na calçada por onde há muito tempo não passa ninguém. Cinco dedos incandescentes que emprestam seu calor às folhas mortas, tentando inflamar em seus corpos quebradiços uma segunda vida. Das janelas de alguns edifícios escapam os galhos das plantas esquecidas pelos antigos moradores. E o que um dia serviu de mera decoração agora recupera suas feições selvagens. Lá embaixo começa a serpentear um pequeno ramo de fumaça.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

 Tudo encoberto por uma fina camada de pó. Os carros largados com as portas abertas no meio da rua, os arbustos secos e as carcaças de cachorro pareciam se esfarelar quando o vento soprava. De muito longe era possível ver a nuvem de poeira avermelhada e meio fosforescente se levantar e decompor tudo em grãos de algo que lembrava um sonho. Tudo muito bonito, mas também terrivelmente fatal.