domingo, 31 de março de 2019





Dia e noite quase sempre indistintos
das marcas no rosto e da voz fraquejante
a luz que se extingue nos olhos
da luta que principia
a cada segunda-feira em nossa derrota
tantos livros como uma droga
que nos impossibilita
quereríamos nunca ter experimentado
a alucinação das palavras dispostas na folha
dia após dia – página após página
consumidas pela voracidade de animal cativo
colérico – amansado – porém – pela coleira
sobreviveu como se não tivesse
como um castigo
inebriado por tudo já dito
menos o principal – por isso a loucura
e no intervalo a vida
tão mais precária
quanto mais tentamos construí-la
assentá-la sobre a pedra
dizer o fora como a nós mesmos
indistinto como a nós mesmos


luiz carlos quirino

domingo, 24 de março de 2019








seguir anônimo como
todos
os demais homens
os que esperam a morte distraídos
silenciosos como a natureza
harmoniosa em sua solidão
seguir contra o esquecimento
do cervo devorado pelo leão
não ser menos importante
do que o ganhador do prêmio nobel
que nossa tentativa de sobrevivência passa
por nossas habilidades com as mãos
sua precisão, sua força
passa pela abundância da terra
pela negação das palavras
ou sua fecundidade
pela prosperidade das lixeiras dos ricos
por nossa capacidade de submissão
e – em alguns raros momentos – de
________insurgência_________

LUIZ C. QUIRINO

sexta-feira, 22 de março de 2019








Apenas quem já teve
a casa invadida pela enchente
sabe que o sagrado não existe
apenas o fora absoluto
e alguns momentos de repouso da violência
é o coração aflito das mães
o cachorro que espera no portão
a segunda-feira do trabalhador
suas mãos calosas e unhas limpas
e deus, o deus lá fora
quando os abandonara
quando os fizera tão determinados
e cândidos
ao mesmo tempo tão mortíferos

Apenas quem já teve
a casa invadida por agentes do estado
sabe que o sagrado não existe
apenas o abandono absoluto
e alguns momentos de repouso da violência
é o coração aflito do trabalhador
suas mãos dispostas junto à parede
as unhas ruídas
e deus, o deus lá fora
incomunicável
quando os fizera tão exaustos e beatos
ao mesmo tempo tão resignados

Apenas quem já teve
o corpo incendiado à noite
sabe que o sono não existe
apenas o vigília absoluta
e a beatitude da ventura



LUIZ CARLOS QUIRINO

sábado, 16 de março de 2019

a biografia dos insetos









Talvez um dia
alguém escreva a biografia
dos cupins que percorrem
assombrosas extensões
nos pés dos homens imóveis
muito mais do que nas casas velhas
e correm de lá pra cá feito cartas
esticando um fio de memória
se olharmos devagar
enquanto o automóvel segue ligeiro
junto ao banhado à beira da rodovia
lembram o mergulho das perdizes
alguns insetos oxigenam o sangue dos homens
alimentando-se de suas perdas
sonhando reviver certas palavras
já quase sem pronúncia
como pode ser delicada a morte
quando cometida por um inseto
como pode ser sonora
mesmo que tenhamos ouvidos tão pequenos
e nossas pernas sejam tão frágeis
e não aguentem muito mais
do que um lampejo da verdade
sem se dobrarem
somos tão lentos perto deles
nosso léxico tão mais pobre
perto deles somos tão vulgares


LUIZ CARLOS QUIRINO

quarta-feira, 13 de março de 2019


homens excessivamente ruidosos
que submergem no fogo
como se as palavras frondosas
sufocassem o tédio ontológico
de suas mensagens e corpos
trabalhadamente derrotados
dobrados sobre si próprios
até que a cabeça forme
um ponto de interrogação
[point-blank]
evidenciando seu cansaço
homens excessivamente translúcidos
em que o dentro e o fora se confundem
suas luzes clandestinas nos edifícios
ofuscam os astros
desenhados no firmamento
quem ainda possui digitais
nas pontas dos dedos?
quem ainda possui um nome
que coincida consigo mesmo?
à imagem fraturada a desrazão
ao animal sem alma a vertigem
ao se perder o fio
perde-se também parte do sonho
seus fluxos e presságios
comparáveis à sorte e seus signos
“o grito” falsificado na parede
homens excessivamente solares
ofuscantes em sua promessa de vitória
doentes mensageiros de um corpo
excessivamente saudável
otimizado até o limiar
entre a abundância e a violência
– uma dívida  


LUIZ CARLOS QUIRINO DA SILVA

domingo, 3 de março de 2019

Sorriso-serrote




se voltássemos a ser criança
e o espanto da vida fosse-nos mais próximo
se fôssemos aquele animalzinho curioso
incapacitado para a dissimulação
se nossos dentes ainda estivessem brancos
e o sorriso vindo deles
não cortasse como um serrote
talvez as mães jamais morressem
e todas as casas seguissem conosco
em nossas pequenas mãos
tempo anterior à invenção da vingança
vento das coisas imaginadas
quando elas ainda não possuíam corpo
antes do vórtice – ou em sua volta oposta
24 horas da hélice – plena de luminescência
de quando o escuro era apenas um medo

LUIZ CARLOS QUIRINO