São três e cinquenta e sete da madrugada de uma noite agradável de
primavera. Quase todos estão em suas casas dormindo. Numa pequena cidade mais
ao sul do Brasil, entretanto, um sujeito chamado Rodrigo está parado sobre a ponte
que cruza a fronteira entre dois municípios. Ele escora sua pélvis na mureta,
inclina levemente o corpo para frente e observa a água escura se debater com
violência contras as colunas que sustentam a estrutura. Ora dobra o corpo para
trás e observa o céu noturno, ora se projeta em direção ao vazio entre a ponte
e o rio como se desejasse também ser água. Sua feição inspira preocupação, uma
vez que seus olhos refletem uma tristeza difícil de descrever.
O quê? Não, não. Tu tá completamente enganado! Meus olhos sempre foram
assim. Minha mãe sempre enche meu saco por causa da minha cara, dizendo que tô
sempre triste. Mas não tenho culpa é a única cara que eu tenho. Ainda mais
depois que eu fumo um. Bah! Daí sim... É que eu não consigo me concentrar em
nada. Minha cabeça é um turbilhão que arrasta qualquer possibilidade de um
pensamento coordenado que seja. Sou vítima do meu próprio pensamento, que são
muitos, que parecem não ser meus. Porque não sei se isso acontece contigo, mas
eu sou comandado, quase sempre, por um tipo de vontade alheia a mim. Como um
tipo de instinto. Só que mais cerebral. Não sei explicar muito bem. Por isso eu
gosto de sair durante a madrugada, quando as ruas tão vazias e todo mundo tá
dormindo. Nenhum carro, nenhum barulho. Até parece que nessas horas consigo
retomar minimamente o controle. Além do mais, tu já parou pra prestar atenção
no canto dos sabias de madrugada. Eu li em algum lugar que eles também preferem
esse horário por causa do silêncio. Principalmente na cidade. Imagina que tu
seja um sabiá e queira te comunicar ou atrair uma fêmea pra chocar uns ovinhos,
constituir uma família, ser um passarinho considerado de bem etc. Durante o
dia, com toda aquela barulheira, isso se torna impossível. Tá! Não sei se é
impossível, mas a operação toda será no mínimo prejudicada. Então eu saio,
observo as estrelas e escuto os sabiás. Só isso. Daí consigo me centrar em mim
mesmo um pouco mais.
Ok, ok! Então talvez devêssemos começar esta história novamente. Deixe-me
trabalhar um pouco melhor neste início... São quatro e três da madrugada de uma
noite de primavera com seus sons característicos. Enquanto a maioria das
pessoas está em casa desfrutando de uma reparadora noite de sono, Rodrigo
procura seu momento de paz ao acompanhar o canto dos sabiás que povoam a cidade
onde vive. Os pássaros aproveitam o silêncio, que só é possível à noite, para
exercitar suas habilidades sociais. O jovem, por sua vez, talvez não esteja
inserido numa trama de relações tão intensas quanto à dos animais de que tanto
gosta. Como ficaremos sabendo adiante, ao que tudo indica, ele não consegue nem
mesmo estabelecer um contato mais íntimo consigo mesmo. Trata-se de alguém que
persegue sua existência através de procedimentos pouco precisos – poderíamos
chamá-los, sem medo, de experimentais. Com todo o risco envolvido, já que o
perigo que o espreita, ao modelar a si sem maiores precauções, é a
autodestruição.
Piorou. Pra começo de conversa, quem te disse que meu nome é Rodrigo?
Passou longe. Eu me chamo Rolinstons. É isso mesmo que tu ouviu. Deixa eu te
contar ma versão resumida do que levou meu pai a me dar esse nome. Ele estava
lá, no começo dos anos oitenta, no interior do Rio Grande do Sul, levando a
vidinha tranquila dele, trabalhando como mestre de obras etc. Meu pai, que
ainda está vivo, graças a Deus, se chama Venceslau.
Então estava lá o seu Venceslau – o jovem Venceslau que naquela época, por ser
jovem, era chamado apenas de Venceslau, ou Vicente para os mais chegados –
trabalhando duramente dia após dia pra conseguir sustentar a família. Nessa
época eu ainda não existia. A família contava apenas com o Vicente e a Janice,
a mulher dele, minha mãe no caso. Naquele tempo ainda não. O seu Venceslau, que
ainda não era seu, mas chamado por todos de Vicente, trabalhava com seu melhor
amigo e irmão da Janice – minha mãe, o que viria a ser apenas um tempo depois.
O melhor amigo e cunhado se chamava Juca, José Carlos na verdade, porém todos
chamavam ele de Juca. Ele, o Juca, era apaixonado por rock. Mesmo com todas as
dificuldades em conseguir os discos das bandas que admirava, ele era um
fervoroso entusiasta do estilo musical. Muita gente achava que ele não batia
muito bem da cacholeta, porque ele era tipo um extraterrestre-roceiro numa zona
rural perdida nos cafundós do sul do Brasil. Tinha o corpo coberto por umas
tatuagens toscas que ele mesmo fez usando agulha de costura e tinta de caneta
esferográfica. Então os desenhos, que já não eram lá essas coisas, com o tempo
iam se deformando ainda mais e ganhando uma cor meio esverdeada. Era um sujeito
magricelo, por isso aqueles braços e pernas finas pareciam os galhos de uma
árvore coberta de musgo ou cipós. Ainda mais que, pra completar, ele tinha uns
cabelos meio compridos desgrenhados – ou pelo menos mais compridos do que os
homens daquele lugar costumavam usar naquela época. Cabelos cortados no estilo mullet
e meio aloirados. Algo entre Chitãozinho e Xororó e Mick Jagger. Esse cara, o
Juca, apesar de todas as dificuldades que pode enfrentar um roqueiro num lugar
assim, tão afastado dos centros urbanos, se mantinha partidário da causa
roqueira. Por sorte ele tinha um amigo, que morava em Porto Alegre, com quem
trocava cartas regularmente. Esse amigo, sempre que podia, envia itens diversos
pelo correio, pôsteres, revistas etc. E, quando tinha alguma novidade musical,
ainda gravava umas fitinhas cassetes dos discos adquiridos. A formação musical
do Juca era toda ela baseada nessas fitas, que ele passava o dia inteiro
escutando na obra. Não desgrudava nunca do radião toca-fitas alimentado por
seis pilhas grandes. As pilhas eram caras, porém o amor do Juca pelo rock era
maior. Um grupo, entre todos, era seu preferido: The Rolling Stones. O
cunhado, meu pai no caso, odiava e tinha de aguentar o dia inteiro aquela
música que considerava uma barulheira sem sentido. Meu pai perguntava ao
cunhado: Como tu sabe o que eles tão dizendo? E se tiverem te mandando à merda
e tu nem sabe? Juca não dava bola. Era apenas mais um que não entendia seu
estilo de vida. Entretanto ele respondia: Tu também não entende o canto dos
passarinhos, o que tão falando, e nem por isso deixa de gostar deles. Questão
de gosto. Os Rolinstons são apenas um pouco mais barulhentos. Pra mim, esse
pessoal do estrangeiro pode ser considerado uns bicho estranho. Não somos todos
uns bicho de Deus? Dizia ele. Meu pai acabava concordando. Até porque se
tratava do seu melhor amigo, cunhado, e um baita de um servente de obras. Não
tinha ninguém que trabalhasse tão pesado quanto ele. Por isso sempre acabava
chegando à conclusão de que aguentar os Stones nem era um sacrifício grande
assim. Mas a vida dá umas voltas inesperadas. Numa tarde de verão, batendo
aquele sol desesperador, os dois estavam trabalhando numa obra daquelas
grandes. Construindo uma casa do zero sozinhos. Porque dava um pouco mais de
dinheiro. É uma conta que todo mundo entende: quanto menos gente pra dividir a
grana, sobra mais pra cada um. Pois bem, estavam os dois debaixo daquele sol,
virando massa, carregando tijolos e sacos de cimento – trabalho pesado mesmo –,
quando o Juca disse, assim meio “en passant”, não estar se sentindo muito bem.
O que não foi levado muito a sério pelos dois. Não sei se tu sabe, mas nesse
meio os caras querem sempre dar uma de machões, por isso costumam não dar muita
atenção aos sinais emitidos pelo corpo tentando dizer que alguma coisa está
errada. Não costumam parar o que estão fazendo. E com eles não era diferente. Lá
pelas duas da tarde, segundo meu pai, o Juca sentiu uma pontada muito forte no
peito, a ponto de não conseguir continuar o trabalho. Pediu licença e se sentou
debaixo duma sombra, em cima de uma pilha de sacos de cimento. Meu pai
perguntou se ele precisava de alguma coisa, se queria dar um pulinho até o
hospital. O Juca respondeu que não precisava, que era apenas um mal-estar
passageiro e que já já estaria melhor. Só precisava parar um pouquinho, tomar
uma água e descansar uns minutinhos. Falou ainda que era bem provável que fosse
apenas um efeito do calor e de todo o sol que tinha pegado na cabeça.
Permaneceu uns minutinhos sentado. Em algum momento em que meu pai, que
continuou trabalhando, não estava olhando, O Juca se deitou, fechou os olhos e
não abriu mais. Morreu aos trinta e dois anos de enfarto. Meu pai nunca superou
o trágico acontecimento. Passou o resto de sua vida se culpando por não ter
insistido um pouco mais em levar o cunhado ao hospital ou por não ter o arrastado
à força mesmo. Bem, isso explica um pouco a origem do meu nome. Obviamente eu
poderia ter me chamado José Carlos ou Juca, porém meu pai achou melhor que
fosse Rolinstons.
Então, agora a par desses detalhes, inicio mais uma vez... São cinco e
treze da manhã. As estrelas já perderam quase todo seu brilho, apenas algumas,
mais insistentes, ainda permanecem debilmente dependuradas no céu. Um aumento
no movimento dos carros e dos ônibus já pode ser notado apesar de ainda não ser
intenso. Algumas pessoas iniciam o dia muito cedo, enquanto as outras ainda
aproveitam os últimos instantes na cama. Existe uma parte, no entanto, que
costuma virar as noites, invertendo a ordem natural da vigília e do sono. É
provável que esse seja o caso do rapaz parado no centro da pequena ponte que
une duas cidades num ponto localizado muito ao sul do Brasil. Ele sustenta o
peso do corpo apoiado no parapeito e se inclina para frente. Alguém que
passasse naquele momento poderia achar que ele pretende se jogar nas águas
barrentas do rio. Entretanto não parece ser essa sua motivação, pois, alguns
segundos depois, ele realiza um movimento inverso, flexionando seu corpo para
trás, agora como se quisesse se jogar de costas sobre algum veículo que por acaso
estivesse passando. Bastam alguns minutos de observação, contudo, para
percebermos que ele, ao repetir continuamente tais movimentos, está interessado
muito mais em contemplar o céu e a água de maneira revezada. Um automóvel atravessa
em disparada a ponte no momento em que o rapaz inclina o corpo em direção à
pista. Por pouco, sua cabeça não é atingida. Ele se recompõe, um tanto
atordoado. Ao longe escuta o rádio do carro a todo volume: “I can't get no, oh no no no”.