domingo, 26 de dezembro de 2021

 

meditação sobre a extensão
e sobre a fratura
do signo
 
marcas de unhas nas pedras
e cheiro das vozes
se decompondo:
 
falo dos cardumes correnteza acima
de armadilhas
com folhas e rasuras
e uma criança meio louca
de cabelos brancos
pele enrugada e
rancor
 
falo da meditação
sob a parede sem reboco
e de coisas que já nascem
                   exaustas
e giram na perturbação
de um centro vazio
 
falo de um mundo sem espessura
quando olho nos cacos
de água
     


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

da cor da água

São três e cinquenta e sete da madrugada de uma noite agradável de primavera. Quase todos estão em suas casas dormindo. Numa pequena cidade mais ao sul do Brasil, entretanto, um sujeito chamado Rodrigo está parado sobre a ponte que cruza a fronteira entre dois municípios. Ele escora sua pélvis na mureta, inclina levemente o corpo para frente e observa a água escura se debater com violência contras as colunas que sustentam a estrutura. Ora dobra o corpo para trás e observa o céu noturno, ora se projeta em direção ao vazio entre a ponte e o rio como se desejasse também ser água. Sua feição inspira preocupação, uma vez que seus olhos refletem uma tristeza difícil de descrever.

O quê? Não, não. Tu tá completamente enganado! Meus olhos sempre foram assim. Minha mãe sempre enche meu saco por causa da minha cara, dizendo que tô sempre triste. Mas não tenho culpa é a única cara que eu tenho. Ainda mais depois que eu fumo um. Bah! Daí sim... É que eu não consigo me concentrar em nada. Minha cabeça é um turbilhão que arrasta qualquer possibilidade de um pensamento coordenado que seja. Sou vítima do meu próprio pensamento, que são muitos, que parecem não ser meus. Porque não sei se isso acontece contigo, mas eu sou comandado, quase sempre, por um tipo de vontade alheia a mim. Como um tipo de instinto. Só que mais cerebral. Não sei explicar muito bem. Por isso eu gosto de sair durante a madrugada, quando as ruas tão vazias e todo mundo tá dormindo. Nenhum carro, nenhum barulho. Até parece que nessas horas consigo retomar minimamente o controle. Além do mais, tu já parou pra prestar atenção no canto dos sabias de madrugada. Eu li em algum lugar que eles também preferem esse horário por causa do silêncio. Principalmente na cidade. Imagina que tu seja um sabiá e queira te comunicar ou atrair uma fêmea pra chocar uns ovinhos, constituir uma família, ser um passarinho considerado de bem etc. Durante o dia, com toda aquela barulheira, isso se torna impossível. Tá! Não sei se é impossível, mas a operação toda será no mínimo prejudicada. Então eu saio, observo as estrelas e escuto os sabiás. Só isso. Daí consigo me centrar em mim mesmo um pouco mais.

Ok, ok! Então talvez devêssemos começar esta história novamente. Deixe-me trabalhar um pouco melhor neste início... São quatro e três da madrugada de uma noite de primavera com seus sons característicos. Enquanto a maioria das pessoas está em casa desfrutando de uma reparadora noite de sono, Rodrigo procura seu momento de paz ao acompanhar o canto dos sabiás que povoam a cidade onde vive. Os pássaros aproveitam o silêncio, que só é possível à noite, para exercitar suas habilidades sociais. O jovem, por sua vez, talvez não esteja inserido numa trama de relações tão intensas quanto à dos animais de que tanto gosta. Como ficaremos sabendo adiante, ao que tudo indica, ele não consegue nem mesmo estabelecer um contato mais íntimo consigo mesmo. Trata-se de alguém que persegue sua existência através de procedimentos pouco precisos – poderíamos chamá-los, sem medo, de experimentais. Com todo o risco envolvido, já que o perigo que o espreita, ao modelar a si sem maiores precauções, é a autodestruição.

Piorou. Pra começo de conversa, quem te disse que meu nome é Rodrigo? Passou longe. Eu me chamo Rolinstons. É isso mesmo que tu ouviu. Deixa eu te contar ma versão resumida do que levou meu pai a me dar esse nome. Ele estava lá, no começo dos anos oitenta, no interior do Rio Grande do Sul, levando a vidinha tranquila dele, trabalhando como mestre de obras etc. Meu pai, que ainda está vivo, graças a Deus, se chama Venceslau. Então estava lá o seu Venceslau – o jovem Venceslau que naquela época, por ser jovem, era chamado apenas de Venceslau, ou Vicente para os mais chegados – trabalhando duramente dia após dia pra conseguir sustentar a família. Nessa época eu ainda não existia. A família contava apenas com o Vicente e a Janice, a mulher dele, minha mãe no caso. Naquele tempo ainda não. O seu Venceslau, que ainda não era seu, mas chamado por todos de Vicente, trabalhava com seu melhor amigo e irmão da Janice – minha mãe, o que viria a ser apenas um tempo depois. O melhor amigo e cunhado se chamava Juca, José Carlos na verdade, porém todos chamavam ele de Juca. Ele, o Juca, era apaixonado por rock. Mesmo com todas as dificuldades em conseguir os discos das bandas que admirava, ele era um fervoroso entusiasta do estilo musical. Muita gente achava que ele não batia muito bem da cacholeta, porque ele era tipo um extraterrestre-roceiro numa zona rural perdida nos cafundós do sul do Brasil. Tinha o corpo coberto por umas tatuagens toscas que ele mesmo fez usando agulha de costura e tinta de caneta esferográfica. Então os desenhos, que já não eram lá essas coisas, com o tempo iam se deformando ainda mais e ganhando uma cor meio esverdeada. Era um sujeito magricelo, por isso aqueles braços e pernas finas pareciam os galhos de uma árvore coberta de musgo ou cipós. Ainda mais que, pra completar, ele tinha uns cabelos meio compridos desgrenhados – ou pelo menos mais compridos do que os homens daquele lugar costumavam usar naquela época. Cabelos cortados no estilo mullet e meio aloirados. Algo entre Chitãozinho e Xororó e Mick Jagger. Esse cara, o Juca, apesar de todas as dificuldades que pode enfrentar um roqueiro num lugar assim, tão afastado dos centros urbanos, se mantinha partidário da causa roqueira. Por sorte ele tinha um amigo, que morava em Porto Alegre, com quem trocava cartas regularmente. Esse amigo, sempre que podia, envia itens diversos pelo correio, pôsteres, revistas etc. E, quando tinha alguma novidade musical, ainda gravava umas fitinhas cassetes dos discos adquiridos. A formação musical do Juca era toda ela baseada nessas fitas, que ele passava o dia inteiro escutando na obra. Não desgrudava nunca do radião toca-fitas alimentado por seis pilhas grandes. As pilhas eram caras, porém o amor do Juca pelo rock era maior. Um grupo, entre todos, era seu preferido: The Rolling Stones. O cunhado, meu pai no caso, odiava e tinha de aguentar o dia inteiro aquela música que considerava uma barulheira sem sentido. Meu pai perguntava ao cunhado: Como tu sabe o que eles tão dizendo? E se tiverem te mandando à merda e tu nem sabe? Juca não dava bola. Era apenas mais um que não entendia seu estilo de vida. Entretanto ele respondia: Tu também não entende o canto dos passarinhos, o que tão falando, e nem por isso deixa de gostar deles. Questão de gosto. Os Rolinstons são apenas um pouco mais barulhentos. Pra mim, esse pessoal do estrangeiro pode ser considerado uns bicho estranho. Não somos todos uns bicho de Deus? Dizia ele. Meu pai acabava concordando. Até porque se tratava do seu melhor amigo, cunhado, e um baita de um servente de obras. Não tinha ninguém que trabalhasse tão pesado quanto ele. Por isso sempre acabava chegando à conclusão de que aguentar os Stones nem era um sacrifício grande assim. Mas a vida dá umas voltas inesperadas. Numa tarde de verão, batendo aquele sol desesperador, os dois estavam trabalhando numa obra daquelas grandes. Construindo uma casa do zero sozinhos. Porque dava um pouco mais de dinheiro. É uma conta que todo mundo entende: quanto menos gente pra dividir a grana, sobra mais pra cada um. Pois bem, estavam os dois debaixo daquele sol, virando massa, carregando tijolos e sacos de cimento – trabalho pesado mesmo –, quando o Juca disse, assim meio “en passant”, não estar se sentindo muito bem. O que não foi levado muito a sério pelos dois. Não sei se tu sabe, mas nesse meio os caras querem sempre dar uma de machões, por isso costumam não dar muita atenção aos sinais emitidos pelo corpo tentando dizer que alguma coisa está errada. Não costumam parar o que estão fazendo. E com eles não era diferente. Lá pelas duas da tarde, segundo meu pai, o Juca sentiu uma pontada muito forte no peito, a ponto de não conseguir continuar o trabalho. Pediu licença e se sentou debaixo duma sombra, em cima de uma pilha de sacos de cimento. Meu pai perguntou se ele precisava de alguma coisa, se queria dar um pulinho até o hospital. O Juca respondeu que não precisava, que era apenas um mal-estar passageiro e que já já estaria melhor. Só precisava parar um pouquinho, tomar uma água e descansar uns minutinhos. Falou ainda que era bem provável que fosse apenas um efeito do calor e de todo o sol que tinha pegado na cabeça. Permaneceu uns minutinhos sentado. Em algum momento em que meu pai, que continuou trabalhando, não estava olhando, O Juca se deitou, fechou os olhos e não abriu mais. Morreu aos trinta e dois anos de enfarto. Meu pai nunca superou o trágico acontecimento. Passou o resto de sua vida se culpando por não ter insistido um pouco mais em levar o cunhado ao hospital ou por não ter o arrastado à força mesmo. Bem, isso explica um pouco a origem do meu nome. Obviamente eu poderia ter me chamado José Carlos ou Juca, porém meu pai achou melhor que fosse Rolinstons. 

Então, agora a par desses detalhes, inicio mais uma vez... São cinco e treze da manhã. As estrelas já perderam quase todo seu brilho, apenas algumas, mais insistentes, ainda permanecem debilmente dependuradas no céu. Um aumento no movimento dos carros e dos ônibus já pode ser notado apesar de ainda não ser intenso. Algumas pessoas iniciam o dia muito cedo, enquanto as outras ainda aproveitam os últimos instantes na cama. Existe uma parte, no entanto, que costuma virar as noites, invertendo a ordem natural da vigília e do sono. É provável que esse seja o caso do rapaz parado no centro da pequena ponte que une duas cidades num ponto localizado muito ao sul do Brasil. Ele sustenta o peso do corpo apoiado no parapeito e se inclina para frente. Alguém que passasse naquele momento poderia achar que ele pretende se jogar nas águas barrentas do rio. Entretanto não parece ser essa sua motivação, pois, alguns segundos depois, ele realiza um movimento inverso, flexionando seu corpo para trás, agora como se quisesse se jogar de costas sobre algum veículo que por acaso estivesse passando. Bastam alguns minutos de observação, contudo, para percebermos que ele, ao repetir continuamente tais movimentos, está interessado muito mais em contemplar o céu e a água de maneira revezada. Um automóvel atravessa em disparada a ponte no momento em que o rapaz inclina o corpo em direção à pista. Por pouco, sua cabeça não é atingida. Ele se recompõe, um tanto atordoado. Ao longe escuta o rádio do carro a todo volume: “I can't get no, oh no no no”.