terça-feira, 28 de abril de 2020




e eu
o que poderia dizer
somando a vida ao meu redor
depositado deste lado da margem
tenciono resistir a esta presença
abstrata chamada tempo
e à agressão de suas
figuras

os passos lá fora são um réquiem
para o futuro – no chão que os pés
não podem tocar – na firmeza espi-
ralar do que desaparece

e eu
o que poderia dizer
somando os minutos ao meu redor
como homem derrotado
como a estiagem ou
a enchente nas
coisas que
sibilam

saúdo os sobreviventes

comparo nossas mutilações e já não
preciso tapar a cabeça à noite por-
que a imensidão que carregamos na
sola dos sapatos desapareceu junto
ao caminho

e nós
o que poderíamos dizer
dos pés  


luiz carlos quirino

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Roland Barthes à janela






Uma frase cristalina anotada num caderno para que não se perca. Caderno que ninguém sabe onde foi parar e que talvez nunca mais seja encontrado. Aqueles que a leram afirmam que sintetizava a experiência da vida, quando observada através de uma lupa, revelando suas mínimas rugosidades apuradas pelo tempo agora capturado.     
Roland Barthes perde-se entre seus pensamentos que fogem através da ponte luminosa que se projeta pela janela de seu escritório numa manhã de outono. Estamos em 1974, e ele nem desconfia de que talvez lhe reste pouco tempo. Seis anos, mais precisamente. Mas como alguém poderia saber quanto tempo ainda tem pela frente? Não. Ninguém poderia saber. Ele segue observando o movimento, na rua quase deserta, filtrado pela translucidez do vidro não muito limpo, o que confere certa aura de sonho à vida lá fora.
Num quintal da vizinhança, a parreira exibe toda a exuberância das uvas maduras, de um azul tão feroz que até ameaça conseguir quebrar a monotonia de um bairro habitado predominantemente por aposentados que prezam pelo silêncio e tranquilidade de uma vida sem sobressaltos.
Mesmo a uma distância tão grande, como a que separa a janela de Barthes e a parreira, chama a atenção a festa empreendida por três tordos sobre os ramos mais carregados de uvas. Sua cor terrosa e brilhante é a camuflagem perfeita para os espaços abertos na natureza. Aqui, no entanto, apresenta-se como um pequeno adorno que ofertam aos olhares que logo terão de se habituar ao rigoroso inverno que se aproxima.
Num pequeno vacilo, ele deixa o caderno cair de suas mãos, como se experimentasse uma espécie de embriaguez proporcionada pela vida que celebra a si mesma lá fora. Por isso não consegue dissipar um tom difuso de melancolia que lhe percorre o corpo inteiro, o que não lhe impede de esboçar um acanhado sorriso no canto da boca. Lembra-se do seminário interminado. Volta-se para suas notas, ao seminário.      


luiz carlos quirino

sábado, 18 de abril de 2020




e nada mais pesa em meu bolso
nem mesmo os pecados de hoje
então porque ainda recebemos a
visita fantasmagórica das máqui
-nas que devoram o sono do mu
-ndo

sob meus pés a trepidação elétrica das
ferramentas usadas na perfuração das
galáxias individuais
projéteis que riscam a estatística dos
corpos e seus pontos nos gráficos
medindo a dimensão das convulsões

delicado tecido que se rasga
mergulho na insuspeita
tragédia dos sonhos
de construção de
uma cidade segura
contra os mortos
capaz de produzir vida
em sua saturação máxima
ultrapassando a barreira
que separa os dois mundos

onde máquinas extraem a carne
angelical dos ditadores e fabricam
capachos para as portas

pelos subúrbios nas tardes de verão
em ruas morbidamente iluminadas

e os passos desarticulam
o corpo produtivo até o limite
e a rosa de asfalto engole
deus – máquina faminta

luiz carlos quirino 




terça-feira, 14 de abril de 2020


traço um pequeno perímetro
à minha volta
dispondo apenas da imaginação
espaço onde tento engordar
minhas crias de vida

e se escapam – até confins onde
nem alcanço inventar –
são elas quem me apresentam
meus irmãos



luiz carlos quirino

domingo, 12 de abril de 2020


um gole de água para Allen Ginsberg
antes – a seca assolou nossa geração
que quase desistiu da terra
agora afinal lavrada

pronta novamente para expressar
sua esterilidade em abundância

e eu me vi destituído de minha
própria possibilidade de falar
mas ninguém finge ser fantasma
_______impunemente

mais dia
menos dia

nos damos conta de que nosso corpo
sempre foi translúcido –
projeção imaginada pelos objetos
à luz de sua beatitude

nem percebemos que nossa fala
também já não possuía um corpo
e tudo o que se dizia era sopro sem som
produzido pela anomalia do λόγος comum
presa ao tempo de depurada espera
tempo-todo-nenhum

e as crianças corriam pelas ruas
nada mais do que sonhos nus

mal pude acreditar no delírio
daquele que nos conduzia
– aberrante sem lírica

apenas a violência das imagens
que se chocam contra a dureza
da mentira depurada

poderíamos chorar para sempre
poderíamos dinamitar o parlamento
poderíamos lavar as mãos

ou oferecer água à Ginsberg
_____________e submergir
levitar nas profundezas abissais
do líquido algo taciturno
que envolve a vida



luiz carlos quirino

domingo, 5 de abril de 2020


sopro a translucidez que
se acerca do real como reflexo
extraindo dos objetos a luz mais pura
apesar do peso extraordinário
___________que transportam
os blocos desaparecem na neblina
ela talvez fosse tão dura e intensa
quanto a muralha erguida entre a
verdade e a própria visão

me admira a perenidade do que vive
sob a claridade mais atordoante
e não esconde
e não se evade
dos afetos distribuídos na superfície
de asfalto ou de palavras ou de prisma
explico estas coisas a mim mesmo
como se eu fosse um outro

para ter alguma certeza de que ainda existo
na américa latina pulmão mãos e fantasia
em que cada relação reaviva uma colônia

quando aciono a claridade artificial
as paredes ganham ainda menos dureza
quando esmurramos as paredes as mãos
duras ganham uma claridade artificial

já não contamos os dias como no tempo
em que andávamos soltos
eu me lembro

riscamos na parede e esperamos
poder deixar nossa célula
eu me lembro

sopra-se a fantasia interminável
na américa latina – apaga-se



luiz carlos quirino