domingo, 31 de maio de 2020

palavras proferidas
sob sol intenso
são sempre perseguidas
por uma sombra gigantesca –
tamanho que não consegue ter a voz

do animal que sonha acordado
e pensa viver entre os bípedes
e se projeta contra a sorte
rompendo o arame farpado
que o cerca

fazendo do urro
a brutalidade da luta
na densidão sufocante
do que não pode ser partilhado
nada importa a não ser
a valia do afeto

dos corpos que se encontram
e já são outros abaixo dos ossos
distantes da orla que se distancia
e os entrega uns aos outros

ave maria dos afogados
na última gota de vida perdida
nas frestas da terra rachada

ave maria sem asas que
bica o grão oneroso e estéril
dos mentirosos – já que

todas as letras têm lastro


 luiz carlos quirino 

quinta-feira, 28 de maio de 2020

me atenho à rotura do torso
e seu rastro gravado nas
pálpebras

erodidas

como se dobra um corpo que se apaga?

elegeria traçar uma rota no ar
e correr antes de seu ocaso
ou dizer uma sílaba de
respiração ofegante

contra o vido que separa o dia
embaciando suas possibilidades
talvez devesse jogar fora a faca
cega da língua e ser todo animal

afinal é preciso correr para além
ainda que não o suficiente para
que a carapaça de rinoceronte
republicano não nos esmague

é o corpo do trabalhador dobrado
que interrompe a engrenagem
da máquina – moída sua
carne em looping


luiz carlos quirino

sábado, 23 de maio de 2020

tudo que é exterior ao rumor
tudo que é virtual e sem peso
nas cercanias da tormenta
capturando o porvir e a
ave mais breve

arriscado xadrez
contra as ondas
até impedir que nos
devoremos mutuamente
ou bebamos a água
áspera de retidão

a monarquia coroada para que
tenhamos uma morte branda
ainda que a imagem cindida
assombre o boletim noturno

e não interrompa meu acanhado funeral diário
em que enceno a gênese a miríade e o colapso
em que tramo uma grinalda com o lixo
luminoso da civilização

era apenas o futuro ontem
desmitificado e o Leviatã à espreita
entre o tempo e o espaço

purifiez nos coeurs da
destruição infinita da fala –
instalação definitiva da surdez


luiz carlos quirino

terça-feira, 19 de maio de 2020


dócil à voz do ser
                 – escoa todo
o pensamento nos
corredores anacrônicos
tão largos quanto as
artérias da metrópole

em cada esquina um acidente
bloqueia o fluxo das horas

exaure
minha
gramática
de aporias
e apostas no
amanhã

atrás de cada janela iluminada
um duplo do que poderia ter sido
preso ao anagrama da vida provável
como léxico das coisas do mundo

ontem
após
ontem

agora conto apenas com o trabalho
de minhas próprias mãos: do
ser no tempo – sein und zeit
atrofiado entre os dedos
e os dentes cerrados
machucam a voz
– logos do corpo
sentado à espera


 luiz carlos quirino 

sábado, 9 de maio de 2020


e os pés desaprenderam
a tocar o chão
de tanto seguir caminhos
que os fizeram delirar
ou talvez seja meu corpo inteiro
irradiando reflexos sanguíneos
– translúcido e sem peso

y hasta lês hablé de los oráculos
y sibilas de la Antigüedad
y de que los delírios
nos precipitavam
contra o tempo circular
porque nada acaba nunca

e a vertigem é a forma
de vida do animal que uso
para contar em palmos a distância
entre meus pés e os estranhos sonhos
que me assombram na vigília

me fazendo cego
nas primeiras horas
animal tateante sobre
uma superfície metafísica
quando o sonho em cacos
retalha a manhã cotejando
sobre as casas ainda
apagadas



luiz carlos quirino