segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A arte da fuga

 

Não consigo esticar um centimetrozinho que seja meus dedos do pé. Mas nesta posição incômoda – todo embolado, como quando a gente tenta dobrar aqueles lençóis chatos com elástico, fazendo quase uma trouxa – não poderia ser diferente. Apesar de desejar que a situação fosse outra. Meu nariz encostado no joelho. Posso sentir o cheiro de pele crua. Deveria ter tomado banho hoje de manhã. Os pelos da perna fazem cócegas nas minhas narinas, acho que já espirrei umas três vezes. Minhas mãos, presas atrás das coxas, não servem pra nada. Sinto umas contrações estranhas na barriga. Algo se mexe como um ratinho correndo em meio às dobras das minhas gorduras. Gruuoó! Som gutural. Um cheiro podre contamina inteiramente o cubículo onde estou preso. Se houvesse algum tipo de escotilha que eu pudesse abrir para fazer circular um pouco de ar. Mas não há. Talvez eu absorva completamente para dentro dos pulmões meu próprio flato. O mais provável é que não dê tempo. Lembro de ter lido, em algum lugar, que o recorde de velocidade de um corpo em queda livre pertence a um francês que ultrapassou os 500 quilômetros por hora, em 1999, mergulhando de cabeça como uma flecha; mas que uma queda normal – de alguém que apenas cai, digamos assim – atinge em média uns 200 e poucos quilômetros por hora. É uma conta difícil, pelo menos pra mim. Porém posso levantar algumas suposições. Somando o peso do meu corpo, condensado numa espécie de bola de carne, ao da caixa, dentro da qual estou espremido, é bem provável que eu esteja caindo numa velocidade acima dos 200 e poucos quilômetros. Com uma habilidade matemática mais avançada, e sabendo a distância entre o ponto de partida e o solo, eu talvez pudesse calcular quantos minutos (ou segundos) tenho antes de me esborrachar no chão. Ou quantos espirros sairão em conjunto de minha boca e nariz, sem que eu possa limpar o ranho, dada a imobilidade de minhas mãos. Digamos que eu levasse dois minutos até rachar minha cabeça, no solo, que deve ser duro como concreto, sendo que já dei uns três espirros num intervalo curtíssimo. Acho que precisaria de um relógio para poder saber o intervalo de tempo. Bem. Não importa. Só agora me dou conta de que cair estando comprimido dentro de um recipiente é muito parecido com estar parado. Se eu não pudesse ver as nuvens passando verticalmente e a contração que sinto no estômago não denunciasse algo anormal, se não tivesse acompanhado o passo a passo de minha entrada na caixa e se ela não fosse de vidro – poderia pensar que se trata de uma brincadeira de gosto duvidoso, que estou parado, cercado de pessoas fazendo um enorme esforço para segurar o riso, enquanto administro meu desespero ou grito por socorro ou, implorando pela minha vida, faço promessas a algum deus que esteja escalado para o plantão do dia. Daí então, depois de me deixarem um tempinho fazendo papel mais do que ridículo, liberam o cadeado e abrem a tampa, dando gargalhadas da minha cara de meus-instantes-finais-de-vida. Eu ficaria puto, mas também aliviado. Obviamente sei que isso não vai acontecer. Porque eu sou o único responsável por ter me colocado nesta situação. Eu e mais ninguém. Nem consigo acreditar que depois de ter ensaiado exaustivamente a fuga da caixa, estando obviamente na segurança da terra firme, na hora agá, quando nada poderia sair errado, as coisas saem do controle. É o tipo de coisa que sempre acontece comigo! Claro que nunca havia alcançado este nível de irreversibilidade. É o auge e ao mesmo tempo o fim. Tenho poucos segundos, agora, me parece. Gruuoó! Puts! E tenho ainda que aguentar esse cheiro horroroso sem poder me mexer. Que final degradante: entre peidos e espirros. Pra completar, acho que já não estou sentindo minhas pernas. Se eu pelo menos possuísse as habilidades abdominais de Joseph Pujol, aquele sujeito que ganhou dinheiro com os flatos que soltava, lá pelo fim do século 19, na França. Hahaha! Deveria ser bizarro o cara conseguir assobiar melodias através de uma flauta acoplada ao cu, apagar velas e fazer imitações. Se bem que, assim como no meu caso, ele também teve um fim trágico, após cair em depressão, com a volta de seus filhos da guerra na condição de inválidos. Sei lá! Quem sabe se eu tivesse tal potência esfincteriana pudesse usá-la como um tipo de turbina, transformando meu traseiro num foguetinho que me tirasse daqui. Que ideia idiota! Meus gases servem, no máximo, como poluidores de ambientes e contribuem para o aumento do buraco na camada de ozônio. Só isso. Minhas habilidades anais são inúteis, não estão à altura de um Joseph Pujol. Ah, não estão mesmo! Sou apenas um ilusionista que se aventura (ou se aventurou) pela arte da escapologia. Nunca cheguei nem perto de um Houdini, o que a situação embaraçosa em que me encontro parece confirmar da pior maneira. Nunca deveria ter largado o emprego de açougueiro para perseguir meu sonho de fazer carreira no ilusionismo e de aprimorar principalmente minha técnica de escapologista. Nananinanão. Deixa eu ver: 200 e poucos quilômetros por hora, caindo já há quantos minutos ou segundos?, que merda!, se eu carregasse preso ao pulso um relógio e tivesse me dedicado um pouquinho mais à matemática talvez soubesse quanto tempo ainda tenho. Não importa, não deve ser muito mesmo. Isso me faz recordar os motivos por que larguei a escola tão cedo e enveredei pelo caminho do ilusionismo e da escapologia. Acho que o ano era 1982, não tenho bem certeza, só sei que foi na mesma época em que o guri, filho do Agenor e da Délia, chegou em casa contando que havia sido abduzido, por isso seu sumiço por dois dias...                           

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