quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Transporte coletivo



Será que amamos o morto?
Ou choramos pela brutalidade da nossa condição?

João Gilberto Noll

Uma freada inesperada, e os passageiros embolam-se uns por cima dos outros. “Cuidado aí, motorista! Acha que tá carregando gado?!” O calor é insuportável dentro do 611, na Assis Brasil, avenida cercada por prédios e com poucas árvores. A irritação dos passageiros segue uma linha ascendente, por causa do amontoamento, por causa do abafamento... “Vai descer, motora! Olha a senhora com criança no colo!” [...] por causa do motorista que se esquece de parar pra que os passageiros desçam. Dia azarento! Por que eu tinha de pegar justamente este barril de pólvora rumo ao centro?! O melhor a se fazer talvez fosse tentar não pensar no calor, não pensar no trânsito trancado, nas sinaleiras que parecem conspirar contra minha pressa. Como já tenho certa experiência em transportes coletivos lotados, desenvolvi hábitos que ajudam a manter alguma calma durante tais viagens – um deles é o seguinte: movido por uma força que foge ao meu controle, não consigo não prestar atenção às conversas que pipocam à minha volta, e num transporte que é coletivo – onde as pessoas se veem obrigadas a ultrapassar o limite da distância minimamente digna entre os corpos –, a maioria das conversas também o são. Outro costume é o de tentar descobrir o que as pessoas estão lendo durante a viagem, nas raras ocasiões em que presencio a cena de alguém com um livro nas mãos; geralmente é uma decepção, mas ainda assim penso que é melhor ler um livro ruim do que não ler nada. O que me faz lembrar de uma viagem, neste mesmo ônibus, alguns dias atrás. Na ocasião, para minha satisfação, mais ou menos perto de meu campo de visão havia um homem sentado (que sortudo!) com um livro aberto em suas mãos. Um senhor de certa jovialidade, vestindo jeans, tênis e casaco preto da Nike. Por alguns instantes tive a impressão de conhecê-lo de algum lugar, só não sabia muito bem de onde, nem se de fato o conhecia. Mas isso talvez fosse irrelevante. Empreendi então uma desengonçada ginástica com o objetivo de esticar o pescoço, em meio a tantos corpos espremidos, na tentativa de uma visão mais clara do livro em questão. É preciso dizer que nesses dias de lotação máxima, sempre alguém resolve ainda carregar algum objeto de grande porte que acaba ocupando espaço considerável onde já não cabe mais nada. Esse dia não contrariava a regra – em meio às imensas sacolas de uma mulher muito magra, magreza essa que não condizia com a força necessária para a sustentação de tal peso, e um jovem bastante gordo, de quase dois metros de altura, eu tentava me esgueirar, para ver o que o sujeito sentado estava lendo. Numa jogada de sorte, no entanto, auxiliado por um solavanco entre os muitos que se seguiam quase ininterruptamente, consegui me aproximar um pouquinho mais do sujeito e numa passada de olhos pude ler a seguinte frase, marcada com caneta fosforescente verde, em seu livro: “deslizei debaixo do mar todo esperançoso até reencontrar à tona a mesmice do mundo dos homens”. A passagem me pareceu obscura, ainda que poética, e não forneceu nenhuma pista a respeito do título do livro ou sobre seu tema. Porém, como nessa confusão consegui um lugar perto do sujeito, por ali fiquei, sondando discretamente o objeto em suas mãos. Em algum momento ele fechou o livro e pude ver a capa. Agora a frase parecia fazer algum sentido – tratava-se do livro do João Gilberto Noll: A fúria do corpo. Fiquei bastante surpreso, ao mesmo tempo alegre, por ainda lerem o Noll, ainda mais num ônibus. Mas eu ainda estava cismado com aquele sujeito. De onde será que eu o conhecia? Talvez fosse alguém famoso. Mas que tipo de famoso anda de ônibus, sem ar condicionado e entupido de gente? Não sei não. Eu puxava pela memória e nada. Disfarçadamente, com o canto do olho, analisava aquele rosto que me parecia tão familiar. Cabelos apenas começando a se acinzentar, apesar da idade, bem cortados, óculos... A senhora sentada ao seu lado lhe pergunta as horas, e a resposta vem em castelhano. Neste instante, percebi. Era óbvio, como não havia me dado conta antes. Contra todas as probabilidades, aquele sujeito era o escritor César Aira, só podia ser, tinha certeza de que era!
Caaabuumm!
Todas as pessoas que se encontravam às minhas costas começaram a se projetar em minha direção, ao mesmo tempo, o veículo fazia uma curva acentuada e se inclinava num iminente tombamento – uma cena que parecia se desenrolar em câmera lenta. Sentia meu corpo ser esmagado por outros corpos – pela mulher magrela e suas sacolas, pelo gigante e por outros passageiros em quem não havia reparado. O peso era imenso, ao meu lado outras pessoas também suportavam por cima delas o peso mortífero, principalmente as que estavam sentadas à minha frente. Ainda tive tempo de lembrar do sujeito que julguei ser o escritor argentino. No lugar onde se encontrava sentado pude ver apenas o livro que estivera em suas mãos e o par de óculos que em seguida foram soterrados pelos corpos, assim como meu corpo também o foi... Soube depois, através de uma televisão instalada no quarto do hospital, que a frente do ônibus havia sido cortada por um ciclista, e o motorista na tentativa de evitar um atropelamento acabara causando um acidente ainda maior. Segundo a reportagem, veiculada pelo telejornal noturno, por sorte ninguém perdera a vida, mas como o veículo estava excessivamente cheio muitas pessoas acabaram ficando feridas. Nenhuma palavra sobre qualquer escritor argentino. Agora – dezoito de abril de dois mil e doze, dois dias depois do acidente – dentro do ônibus, chegando ao centro, penso no caráter insólito dessa história, que poderia muito bem fazer parte de algum livro do próprio Aira. Tenho de descer, pelo menos o martírio do calor chega ao fim. Antes de me dirigir ao local de meu compromisso acho que dá tempo de passar num boteco, comer um pastel e tomar um café, ainda tenho uns trinta minutos, e a reunião é daqui uns quarenta e cinco. Na televisão está passando um noticiário local, mas de repente algo me parece fora do lugar – estão falando a respeito de um festival literário porto-alegrense, e uma das atrações do evento é justamento o escritor César Aira, que chegou à cidade dois dias atrás.  Alguma coisa parece não se encaixar nessa história. Agora a jornalista entrevista o próprio escritor, ele está dizendo que, além da participação no evento, está na cidade para conhecer pessoalmente o escritor João Gilberto Noll e que sua estadia por aqui já o inspirou a começar a escrever um conto que se passa em Porto Alegre e que possui o nome provisório de Transporte coletivo, sobre um escritor argentino que se envolve num acidente dentro de um ônibus ao se dirigir a um encontro com o escritor João Gilberto Noll... Puta que pariu! Esta porra de café tá muito quente, até queimei meus beiços! Puta que pariu, Aira! Puta que pariu! Peraí, o que é aquilo vindo do céu?! Parece um lápis gigante com uma borracha na ponta! Puta que...



luiz quirino

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