Será que amamos o morto?
Ou choramos pela brutalidade da nossa condição?
João Gilberto Noll
Uma freada
inesperada, e os passageiros embolam-se uns por cima dos outros. “Cuidado aí,
motorista! Acha que tá carregando gado?!” O calor é insuportável dentro do 611,
na Assis Brasil, avenida cercada por prédios e com poucas árvores. A irritação
dos passageiros segue uma linha ascendente, por causa do amontoamento, por
causa do abafamento... “Vai descer, motora! Olha a senhora com criança no
colo!” [...] por causa do motorista que se esquece de parar pra que os
passageiros desçam. Dia azarento! Por que eu tinha de pegar justamente este
barril de pólvora rumo ao centro?! O melhor a se fazer talvez fosse tentar não
pensar no calor, não pensar no trânsito trancado, nas sinaleiras que parecem
conspirar contra minha pressa. Como já tenho certa experiência em transportes
coletivos lotados, desenvolvi hábitos que ajudam a manter alguma calma durante
tais viagens – um deles é o seguinte: movido por uma força que foge ao meu controle,
não consigo não prestar atenção às conversas que pipocam à minha volta, e num transporte
que é coletivo – onde as pessoas se veem obrigadas a ultrapassar o limite da
distância minimamente digna entre os corpos –, a maioria das conversas também o
são. Outro costume é o de tentar descobrir o que as pessoas estão lendo durante
a viagem, nas raras ocasiões em que presencio a cena de alguém com um livro nas
mãos; geralmente é uma decepção, mas ainda assim penso que é melhor ler um
livro ruim do que não ler nada. O que me faz lembrar de uma viagem, neste mesmo
ônibus, alguns dias atrás. Na ocasião, para minha satisfação, mais ou menos perto
de meu campo de visão havia um homem sentado (que sortudo!) com um livro aberto
em suas mãos. Um senhor de certa jovialidade, vestindo jeans, tênis e casaco preto
da Nike. Por alguns instantes tive a impressão de conhecê-lo de algum lugar, só
não sabia muito bem de onde, nem se de fato o conhecia. Mas isso talvez fosse
irrelevante. Empreendi então uma desengonçada ginástica com o objetivo de esticar
o pescoço, em meio a tantos corpos espremidos, na tentativa de uma visão mais
clara do livro em questão. É preciso dizer que nesses dias de lotação máxima,
sempre alguém resolve ainda carregar algum objeto de grande porte que acaba
ocupando espaço considerável onde já não cabe mais nada. Esse dia não
contrariava a regra – em meio às imensas sacolas de uma mulher muito magra,
magreza essa que não condizia com a força necessária para a sustentação de tal
peso, e um jovem bastante gordo, de quase dois metros de altura, eu tentava me
esgueirar, para ver o que o sujeito sentado estava lendo. Numa jogada de sorte,
no entanto, auxiliado por um solavanco entre os muitos que se seguiam quase
ininterruptamente, consegui me aproximar um pouquinho mais do sujeito e numa
passada de olhos pude ler a seguinte frase, marcada com caneta fosforescente
verde, em seu livro: “deslizei debaixo do mar todo esperançoso até reencontrar
à tona a mesmice do mundo dos homens”. A passagem me pareceu obscura, ainda que
poética, e não forneceu nenhuma pista a respeito do título do livro ou sobre
seu tema. Porém, como nessa confusão consegui um lugar perto do sujeito, por
ali fiquei, sondando discretamente o objeto em suas mãos. Em algum momento ele
fechou o livro e pude ver a capa. Agora a frase parecia fazer algum sentido –
tratava-se do livro do João Gilberto Noll: A fúria do corpo. Fiquei bastante
surpreso, ao mesmo tempo alegre, por ainda lerem o Noll, ainda mais num ônibus.
Mas eu ainda estava cismado com aquele sujeito. De onde será que eu o conhecia?
Talvez fosse alguém famoso. Mas que tipo de famoso anda de ônibus, sem ar
condicionado e entupido de gente? Não sei não. Eu puxava pela memória e nada.
Disfarçadamente, com o canto do olho, analisava aquele rosto que me parecia tão
familiar. Cabelos apenas começando a se acinzentar, apesar da idade, bem
cortados, óculos... A senhora sentada ao seu lado lhe pergunta as horas, e a
resposta vem em castelhano. Neste instante, percebi. Era óbvio, como não havia
me dado conta antes. Contra todas as probabilidades, aquele sujeito era o
escritor César Aira, só podia ser, tinha certeza de que era!
Caaabuumm!
Todas as pessoas
que se encontravam às minhas costas começaram a se projetar em minha direção, ao
mesmo tempo, o veículo fazia uma curva acentuada e se inclinava num iminente
tombamento – uma cena que parecia se desenrolar em câmera lenta. Sentia meu
corpo ser esmagado por outros corpos – pela mulher magrela e suas sacolas, pelo
gigante e por outros passageiros em quem não havia reparado. O peso era imenso,
ao meu lado outras pessoas também suportavam por cima delas o peso mortífero,
principalmente as que estavam sentadas à minha frente. Ainda tive tempo de
lembrar do sujeito que julguei ser o escritor argentino. No lugar onde se
encontrava sentado pude ver apenas o livro que estivera em suas mãos e o par de
óculos que em seguida foram soterrados pelos corpos, assim como meu corpo
também o foi... Soube depois, através de uma televisão instalada no quarto do
hospital, que a frente do ônibus havia sido cortada por um ciclista, e o
motorista na tentativa de evitar um atropelamento acabara causando um acidente
ainda maior. Segundo a reportagem, veiculada pelo telejornal noturno, por sorte
ninguém perdera a vida, mas como o veículo estava excessivamente cheio muitas
pessoas acabaram ficando feridas. Nenhuma palavra sobre qualquer escritor
argentino. Agora – dezoito de abril de dois mil e doze, dois dias depois do
acidente – dentro do ônibus, chegando ao centro, penso no caráter insólito
dessa história, que poderia muito bem fazer parte de algum livro do próprio Aira.
Tenho de descer, pelo menos o martírio do calor chega ao fim. Antes de me
dirigir ao local de meu compromisso acho que dá tempo de passar num boteco,
comer um pastel e tomar um café, ainda tenho uns trinta minutos, e a reunião é
daqui uns quarenta e cinco. Na televisão está passando um noticiário local, mas
de repente algo me parece fora do lugar – estão falando a respeito de um
festival literário porto-alegrense, e uma das atrações do evento é justamento o
escritor César Aira, que chegou à cidade dois dias atrás. Alguma coisa parece não se encaixar nessa
história. Agora a jornalista entrevista o próprio escritor, ele está dizendo
que, além da participação no evento, está na cidade para conhecer pessoalmente
o escritor João Gilberto Noll e que sua estadia por aqui já o inspirou a
começar a escrever um conto que se passa em Porto Alegre e que possui o nome
provisório de Transporte coletivo, sobre um escritor argentino que se envolve
num acidente dentro de um ônibus ao se dirigir a um encontro com o escritor
João Gilberto Noll... Puta que pariu! Esta porra de café tá muito quente, até
queimei meus beiços! Puta que pariu, Aira! Puta que pariu! Peraí, o que é
aquilo vindo do céu?! Parece um lápis gigante com uma borracha na ponta! Puta
que...
luiz quirino
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