segunda-feira, 20 de abril de 2020

Roland Barthes à janela






Uma frase cristalina anotada num caderno para que não se perca. Caderno que ninguém sabe onde foi parar e que talvez nunca mais seja encontrado. Aqueles que a leram afirmam que sintetizava a experiência da vida, quando observada através de uma lupa, revelando suas mínimas rugosidades apuradas pelo tempo agora capturado.     
Roland Barthes perde-se entre seus pensamentos que fogem através da ponte luminosa que se projeta pela janela de seu escritório numa manhã de outono. Estamos em 1974, e ele nem desconfia de que talvez lhe reste pouco tempo. Seis anos, mais precisamente. Mas como alguém poderia saber quanto tempo ainda tem pela frente? Não. Ninguém poderia saber. Ele segue observando o movimento, na rua quase deserta, filtrado pela translucidez do vidro não muito limpo, o que confere certa aura de sonho à vida lá fora.
Num quintal da vizinhança, a parreira exibe toda a exuberância das uvas maduras, de um azul tão feroz que até ameaça conseguir quebrar a monotonia de um bairro habitado predominantemente por aposentados que prezam pelo silêncio e tranquilidade de uma vida sem sobressaltos.
Mesmo a uma distância tão grande, como a que separa a janela de Barthes e a parreira, chama a atenção a festa empreendida por três tordos sobre os ramos mais carregados de uvas. Sua cor terrosa e brilhante é a camuflagem perfeita para os espaços abertos na natureza. Aqui, no entanto, apresenta-se como um pequeno adorno que ofertam aos olhares que logo terão de se habituar ao rigoroso inverno que se aproxima.
Num pequeno vacilo, ele deixa o caderno cair de suas mãos, como se experimentasse uma espécie de embriaguez proporcionada pela vida que celebra a si mesma lá fora. Por isso não consegue dissipar um tom difuso de melancolia que lhe percorre o corpo inteiro, o que não lhe impede de esboçar um acanhado sorriso no canto da boca. Lembra-se do seminário interminado. Volta-se para suas notas, ao seminário.      


luiz carlos quirino

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