Uma frase cristalina anotada num caderno para que não se perca. Caderno
que ninguém sabe onde foi parar e que talvez nunca mais seja encontrado.
Aqueles que a leram afirmam que sintetizava a experiência da vida, quando
observada através de uma lupa, revelando suas mínimas rugosidades apuradas pelo
tempo agora capturado.
Roland Barthes perde-se entre seus pensamentos que fogem através da ponte
luminosa que se projeta pela janela de seu escritório numa manhã de outono. Estamos
em 1974, e ele nem desconfia de que talvez lhe reste pouco tempo. Seis anos,
mais precisamente. Mas como alguém poderia saber quanto tempo ainda tem pela
frente? Não. Ninguém poderia saber. Ele segue observando o movimento, na rua quase
deserta, filtrado pela translucidez do vidro não muito limpo, o que confere
certa aura de sonho à vida lá fora.
Num quintal da vizinhança, a parreira exibe toda a exuberância das uvas
maduras, de um azul tão feroz que até ameaça conseguir quebrar a monotonia de
um bairro habitado predominantemente por aposentados que prezam pelo silêncio e
tranquilidade de uma vida sem sobressaltos.
Mesmo a uma distância tão grande, como a que separa a janela de Barthes e
a parreira, chama a atenção a festa empreendida por três tordos sobre os ramos
mais carregados de uvas. Sua cor terrosa e brilhante é a camuflagem perfeita
para os espaços abertos na natureza. Aqui, no entanto, apresenta-se como um
pequeno adorno que ofertam aos olhares que logo terão de se habituar ao rigoroso
inverno que se aproxima.
Num pequeno vacilo, ele deixa o caderno cair de suas mãos, como se
experimentasse uma espécie de embriaguez proporcionada pela vida que celebra a
si mesma lá fora. Por isso não consegue dissipar um tom difuso de melancolia
que lhe percorre o corpo inteiro, o que não lhe impede de esboçar um acanhado
sorriso no canto da boca. Lembra-se do seminário interminado. Volta-se para
suas notas, ao seminário.
luiz carlos quirino
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