quinta-feira, 21 de outubro de 2021

O arrasta móveis

 

Como tem acontecido, toda noite no último mês, hoje mais uma vez, em determinada hora da madrugada, através da parede fina que divide os apartamentos, começo a ouvir meu vizinho arrastando móveis. Ou pelo menos emitir sons do que parece ser um arrastar de mesas, camas ou sofás. Tenho de acordar às seis horas para trabalhar, já são três e vinte e cinco e ainda não consegui pregar o olho. Ou melhor, como na maioria das vezes em que o cara resolve circular ruidosamente dentro do seu apartamento, atravesso a noite num estado de liminaridade, que não pode ser considerado nem de sono nem de vigília. Sei lá, um tipo de sonho acordado, como se a realidade estivesse se dissolvendo num tipo de bruma ou um véu, muito fino, me impedisse de tocar nas coisas de fato. Depois passo o dia me arrastando, cansado. O que faz com que as horas do dia pareçam a continuidade do sonho da noite anterior. Zonzeira total. Por isso quando amanhece acabo sempre me esquecendo de ir falar com ele, e a coisa se repete noite após noite.  

As consequências das noites maldormidas, entretanto, são muito concretas. Outro dia peguei o ônibus errado quando ia para o trabalho. Só me dei conta da burrada quando ele dobrou numa rua estranha. Mas já era tarde demais. Até eu conseguir pegar a condução correta e retomar a rota, já havia se passado mais de uma hora. Consequência: acabei chegando quase ao meio dia e levando aquele esporro do meu supervisor. Até acordei um pouco – momentaneamente. Não demorou muito pra eu voltar a zanzar feito um zumbi pelos corredores da firma. Os dias confusos se amontoam. E, quando volto pra casa, as coisas não têm sido melhores.

Ainda não sei o nome o nome do meu vizinho. Nunca nem cruzei com ele pelos corredores, na verdade. Na real, eu pouco falo ou mantenho algum contato com ele ou com qualquer outro morador do meu prédio. Saio pela manhã, bem cedo, passo o dia todo fora e só volto pra casa à noite. Não tenho interesse em fazer amizade com ninguém. O que eu queria era pelo menos conseguir ter a porra de uma noite de sono depois de um dia cansativo de trabalho. Em geral um dia de merda – tendo de bater as metas inalcançáveis impostas pelos psicopatas do setor administrativo, que não descolam aquelas bundonas gordas das cadeiras o dia inteiro enquanto corremos de um lado para o outro, feito baratas tontas. Mais tontas ainda por se contentarem com as migalhas que nos fazem correr. Ok, tudo bem, quanto a isso eu até já estou acostumado, já desenvolvi uma carapaça, tipo a de uma barata mesmo, que é a que me convém. O que tem me tirado do sério, mais do que de costume, é chegar na minha casa e não conseguir descansar direito por causa de um sujeito que nem conheço, porque ele resolve praticar um Feng Shui satânico a noite inteira, noite após noite. Ah! Vá pra puta que pariu!

Agora são quatro e quarenta sete. O arrastar de móveis continua num intervalo mais ou menos regular de tempo. O problema é que quando parece que acabou, e estou quase pegando no sono, recomeça novamente, me arrastando pra estaca zero. Semana passada, num dia em que eu estava de folga, e a maioria dos outros moradores do condomínio estava trabalhando, até tentei dar uma bisbilhotada pela janela do apartamento do arrasta móveis. Achei tudo muito esquisito. Tinha uma cortina meio aberta numa das janelas, era razoavelmente alta, mas subi numa lixeira e consegui dar uma espiadinha lá dentro. Pelo menos o cômodo que consegui ver parecia vazio, sem nenhuma mobília, nenhum obejeto. Até falei com o zelador e perguntei se ele conhecia o morador do duzentos e cinco. Só que quando ele me disse que, pelo menos pelo que ele sabia, não havia nenhum morador em tal apartamento, fiquei sem entender nada. Tenho certeza de que tem alguém ali. Senão não estaria até agora acordado.

Continuo me virando na cama, de um lado pro outro. Talvez a irritação e a falta de sono estejam me deixando louco, não sei não, porque posso jurar que agora também comecei a escutar um barulho no andar de cima. Um negócio irritante parecido com alguém mexendo uma cadeira, tipo quando a gente tenta se acomodar na mesa. As coisas agora se tornaram um pouquinho mais malignas, beirando o sadismo mesmo. Alguém arrasta alguma coisa no apartamento ao lado, tento pensar em outra coisa – contar carneirinhos, jogar uma partida de xadrez mental, tapar a cabeça com o travesseiro, perna pra dentro do edredom, perna pra fora, copo d’água, chazinho de camomila, leitura de um livro bem chato, ida ao banheiro –, daí quando estou quase apagando, começa o arrastar no andar de cima, que agora tenho certeza de que tá acontecendo.   

Cinco e vinte e um! A escuridão noturna – boa pra dormir, caso não se seja interrompido – já começa a perder força. Nem sei se realmente não consegui dormir ou se não estou sonhando que não consigo dormir. Pode ser que daqui a pouco eu acorde revigorado e descubra que na verdade ninguém mora encostado à minha parede ou acima da cabeça. Seria ótimo acordar numa casa. Melhor ainda, numa fazendo, ser despertado pelo mugido de uma vaga ou pelo cacarejo das galinhas. Vou ficar bem quietinho aqui e torcer para que esteja sonhando. Quer dizer, sonhando não, sendo atormentado por um pesadelo! Só posso estar dentro de um pesadelo que só acaba com os primeiros raios de sol. Não pode ser! Juro que estou ouvindo mais um arrastar de móveis, agora um pouco mais longínquo. Parece que estou em meio a um concerto de música atonal regido pelo próprio Lúcifer. Ou meus vizinhos devem ser meio que uns Schoenbergs de uma empresa de mudanças que não termina o trabalho nunca. Mudança em looping. Como dormir com um him, rom, guiz, tac, tac, a noite inteira, que encerra aqui e começa lá, como se estivessem respondendo uns aos outros?!

Enfim, após mais uma noite de filme de terror, saio de meu apartamento para trabalhar. Desço pelas escadas mesmo, como costumo fazer, já que moro no segundo andar. Antes de chegar à rua, encontro o zelador, que mora no mesmo prédio, ele está lendo o jornal, com uma aparência jovial e descansada, de quem teve uma ótima noite de sono. Então pergunto a ele sobre a noite anterior, se ele também ouviu a barulheira. Pra minha surpresa ele me responde, com um sorriso no rosto e certa desconfiança, dizendo que não escutou nada, que dormiu como um bebê e que inclusive fazia muito tempo que não dormia tão bem. Ainda reiterou o que tinha me dito alguns dias antes. Segundo ele, meu apartamento estava relativamente isolado, uma vez que não havia outros moradores no meu andar, nem no de cima. Por isso era improvável que o “arrastar de móveis” (nesta parte, em especial, ele esboçou um irritante sorrisinho no canto da boca), se é que aconteceu mesmo, tenha origem na casa dos vizinhos – que, segundo ele, não tenho.    

Agora eu mesmo já estou sentindo um pouco de vergonha. Pode ser coisa da minha cabeça. E eu aqui importunando os vizinhos. Estes, sim, que existem. Quer dizer, não sei, eu acho. O mais provável é que eu esteja sendo vítima de algum tipo de perturbação mental, de alguma coisa que se manifesta com mais intensidade à noite, alguma variante do terror noturno, aquele quando o sujeito está acordado, mas não consegue se mexer. Já vi uma reportagem sobre isso na televisão. Hum! Verdade! Acho que pode bem ser algo do tipo.

Um pouco humilhado, sem saber muito bem onde enfiar a cara, me despeço do zelador. Evito olhar muito em seu rosto. Quando ganho a rua, dou uma última passada de vista por aquelas janelas centenas de janelas do grande bloco de apartamentos onde moro. A maioria ainda fechada naquela hora da manhã. As abertas, no entanto, que permitem que se veja o interior das habitações, exibem uma movimentação pra lá de curiosa. Grupos de pessoas transportando os móveis de um apartamento para outro, como se tivessem muita urgência, como se estivessem fugindo de alguma coisa. Alguns moradores arrastam sozinhos mesas, geladeiras e outros tipos de mobília, saem por uma porta e entram em outra. Pelo menos é o que consigo ver, pelas janelas abertas, daqui debaixo. Na do apartamento ao lado do meu, que está com a cortina puxada, consigo identificar a figura do zelador e de mais algumas pessoas que não conheço arrastando com muita violência os móveis. É a última cena a que assisto antes de subir no ônibus rumo a mais um dia de trabalho.      

 

   

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