sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Planeta luminoso

O silêncio era completo. A única coisa que poderia se aproximar de algo como uma sonoridade eram as batidas de seu próprio coração. Em alguns momentos, quando prestava bastante atenção, ela conseguia ouvir a circulação do sangue dentro de suas veias e vasos. Tampouco os propulsores da cápsula faziam qualquer ruído. Sabia que estava em movimento apenas quando olhava através da cúpula dianteira a imensidão escura, salpicada de pontos brilhantes que muito lentamente iam mudando de posição. O movimento era mais perceptível quando se aproximava das amplas janelas na parte posterior do veículo espacial. Por meio delas conseguia observar o gigantesco planeta diminuir de maneira bastante evidente em comparação com os outros pontos de referência. Seus pés, em alguns momentos, perdiam o contanto com o chão. Ela então fechava os olhos e lembrava-se da deliciosa sensação de habitar um corpo sem peso, de se deixar flutuar como se fizesse uso de uma consciência sem massa, de pura circulação entre uma ideia e outra, um devaneio e outro. E se permitia ficar assim por alguns segundos. Quando abria os olhos era tomada pela melancolia emitida pelo planeta azul se distanciando. O azul mais lindo que se lembrava de já ter visto, intercalado por flocos brancos e vaporosos, a esfera era ainda circundada por um tipo de aura – a atmosfera responsável pela vida durante milhões de anos.         

Um livro passa flutuando ao lado de seu rosto. As folhas entreabertas ondulam na falta de gravidade como se tivessem ensaiado antecipada uma coreografia a ser posta em prática na quietude dos momentos de despedida. As frases estão impressas numa letra desenhada com um capricho quase escolar. Algumas páginas trazem ilustradas cenas de uma vida deixada pra trás. Três crianças, duas meninas e um menino, usando roupas de banho listradas, correm por areias praianas, acompanhadas por um cachorrinho de bigodes e pelo ouriçado, ao fundo um mar com ondas calmas. Acima dele alguns pássaros marítimos fazem acrobacias. Um pouco mais distantes, vestindo roupas leves e claras, um casal está sentado sobre a toalha – ou algum outro tipo de tecido – disposta sobre a areia. O guarda-sol inclinado projeta sombra até os dois, sua estampa é quase igual à das roupas das crianças. Todos os mamíferos ilustrados, entretanto, cobrem o rosto com um tipo de máscara, equipada com um visor transparente e filtros de ar nas laterais.         

Madalena nada, num tipo de mergulho entre os espaços vazios da cápsula, até encontrar o livro e segurá-lo entre as mãos. Posiciona-se horizontalmente e toma impulso utilizando a força das pernas apoiadas contra a parede. Vai até a central de controle, onde existem dois assentos, senta-se num deles e se fixa por meio de um sinto de segurança que forma um xis em seu peito e que também se conecta a sua cintura. Solta um longo suspiro. Sua expressão parece cansada. Abre o livro e inicia sua leitura, articulando com clareza cada palavra como se estivesse lendo para alguém:

 

CENA VII

 

Uma mulher e um homem entram em cena conversando no que parece ser a sala de um apartamento. O teletransmissor ligado, com o som quase inaudível, flutua entre eles e acompanha seus deslocamentos pelo recinto. Ele deixa transparecer certo ar de preocupação enquanto ela, de costas para a plateia o tempo todo, expressa as nuances de seu humor por meio das modulações da voz.

 

ELA

Não pode ser verdade! Por que o seria justo agora? Desde que me conheço por gente, sempre que esse assunto vem à tona é de forma alarmista (pausa). Por que desta vez as previsões iriam se concretizar?

 

ELE

(Andando olhando para baixo) Não sei não. É que agora os sinais estão se multiplicando como uma espécie de confirmação da tragédia sempre iminente e, ao mesmo tempo, sempre desacreditada.

 

ELA

Calma! Não devemos tomar nenhuma decisão precipitada! (Pausa um pouco mais longa como se estivesse procurando as palavras) Vamos levando as coisas do jeito que podemos. Até porque não há nada que possamos fazer para resolver o problema, tampouco existe qualquer jeito de fugir de suas consequências, caso elas se confirmem.

 

ELE

Tenho inveja de seu sangue frio (pausa). Definitivamente, eu não consigo encarar essa situação de forma, assim, tão racional (sorrindo de maneira meio perturbada).

 

ELA

(Aproximando-se do homem e o envolvendo num abraço) Estou aqui pra lhe ajudar no que for preciso, querido! Vamos levando as coisas, na medida do possível, sem pânico. Mantendo nosso dia a dia sem muitas alterações. Certeza, certeza mesmo, não temos de nada, então que tal não sofrermos tanto por algo que, no fundo, talvez não passe de uma probabilidade distante.

 

ELE

Acho que você tem razão. Quase sempre tem, né?!

 

ELA

Podemos, por exemplo, continuar com os preparativos da nossa viagem. O que você acha?

 

ELE

(Como se estivesse mais aliviado) Acho uma boa ideia. Aquela mala roxa...

 

Os dedos de Madalena não conseguem aguentar o calor das páginas do livro. Ela o solta e observa flutuar enquanto suas folhas iniciam um lento processo de combustão, quase em câmera lenta. Um clarão invade a espaçonave como se tivesse sido desencadeado pelo livro. Mas na verdade não. Rapidamente ela percebe que a origem da luz é exterior ao veículo. Mesmo com bastante dificuldade em conseguir ver algo, por causa da claridade ofuscante, Madalena se aproxima da janela traseira e é tomada pelo horror. Não que ela não tivesse consciência do que estava prestes a acontecer. No entanto a visão da realidade, e sua confirmação, pode em alguns momentos tomar contornos perturbadores. A grande bola, antes azul, estava sendo percorrida por gigantescas rachaduras, partes de sua crosta estavam se desprendendo e se desfazendo em milhões de pedaços de rocha e poeira de uma cor que se confundia com a dos confins da galáxia. O núcleo do planeta começava a eclodir, disputando espaço com a matéria escura do universo, transformando tudo ao seu redor em pura luz.    

 

    

 

 

 

   

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