quarta-feira, 31 de maio de 2023

A raiva

 

Terça-feira de chuva e abafamento, a panela de pressão assobiando com um terço do jantar dentro, e a televisão ligada apenas por companhia. Mas já começo a me perguntar se foi uma boa ideia. Porque no telejornal do começo da noite um sujeitinho atarracado e usando um terno pelo menos uns dois números menor dá contornos circenses a mais uma tragédia. Em meio a gestos angulosos e convulsões – como um experimento resultante do cruzamento entre Mussolini e Ian Curtis – o homem conclama a ação das autoridades. Se indigna com a ineficiência que, segundo ele, corrói os mais variados setores da administração pública. “Tem que privatizar tudo! O cidadão de bem leva este país nas costas, paga impostos altíssimos e não recebe nada em troca.” Vocifera, espumando pelos cantos da boca, a gravata curta, no meio da barriga e um pouco enviesada.

O vento bate com força na janela da cozinha. Olho Esquerdo se assusta e se encolhe num canto do sofá, ele sempre morreu de medo da chuva. Deve ter passado por algum incidente traumático antes de eu o encontrar. Além do mais, não demora muito para os trovões começarem a rugir e o fazer tremer encolhido. Com o rabo entre as pernas, ele me lança um olhar suplicante. Infelizmente não posso ajudar muito. Não posso parar a chuva, muito menos os estrondos que chegam a sacudir algumas louças no armário.

Na televisão o sujeitinho continua exibindo sua boca espumosa. “Depois que a polícia enche de bala uns crápulas desses, vêm os Direitos Humanos dizer que não pode. Onde é que tá os Direitos Humanos quando as pessoas honestas precisam dele? Que absurdo!” Com o rosto todo vermelho de raiva, ele parece que vai explodir ou ter um AVC a qualquer momento. Percebo que Olho Esquerdo também parece incomodado. O coitado se encolhe a cada estrondo no céu, olha para o aparelho de TV, com uma cara assustada, e depois me encara como se pedisse socorro, como se eu tivesse poder para acabar com tudo isso. Eu poderia desligar a televisão, é verdade. O problema é que prometi à minha amiga que assistiria ao comercial em que ela irá aparecer no intervalo do programa. Quanto à chuva e tudo o mais, nem eu nem ninguém possui ingerência.

Olho Esquerdo começa a cavar no sofá. Eu obviamente lanço meu olhar de reprovação, seguido por algumas censuras leves, porque ele não tem culpa, não entende o que está acontecendo. Provavelmente deve achar que alguma catástrofe de proporções cósmicas se aproxima e que eu, paralisado por minhas limitações humanas, não consigo me dar conta da tragédia que aniquilará a nós dois. Bem, o que importa é que ele parece não ter dado muita importância à minha censura e ataca o acento do sofá com um vigor que ganha intensidade a cada investida. Tento segurar suas patas e tirá-lo de cima do sofá, mas sou respondido com dentes à mostra como se Olho Esquerdo tivesse se dado conta de que deveria tomar a iniciativa e tentar salvar nossas vidas.

A escuridão já é completa lá fora. Alguma coisa – talvez a situação toda com Olho Esquerdo e a chuva, não sei – me fez perder a noção do tempo. Não que já tenham se passado muitas horas. Não tanto. Mas tempo suficiente para eu começar a sentir um cheiro de queimado e me dar conta de que acabei esquecendo as panelas no fogo. Pulo até a cozinha e desligo todas as bocas que estavam acesas no fogão. E Olho Esquerdo continua cavando. E o apresentador continua urrando na televisão. E eu agora tentando pensar numa solução para a fome que faz meu estômago roncar como se um pequeno animalzinho se aninhasse na minha barriga.         

Além disso, minha paciência já dá sinais de esgotamento. Deve ser efeito de minha barriga vazia que começa a murchar e a tirar minha capacidade de concentração em qualquer outra coisa. Como se não bastasse, Olho Esquerdo arranca os primeiros flocos de espuma amarela das entranhas do sofá. Tento falar com ele mais uma vez, mas é inútil. Por isso meu chinelo voa em sua direção. Ele, por sua vez, pouco se abala. Desvia da trajetória do calçado, me olhando sem entender nada. No entanto interrompe apenas momentaneamente sua escavação, apenas o tempo que o chinelo leva para percorrer o cominho entre minha mão e o chão da sala. O efeito, pra minha frustração, parece ser justamente o contrário do esperado, uma vez que ele agora ataca com ainda mais vontade a espuma. Seu medo de trovões parece ser maior do que o de chinelos.

O estrondo das trovoadas vai quicando até os recantos mais profundos da minha cabeça. Acho que deve ter alguma coisa a ver com o nível de glicose baixo, porque minha força também parece ter começado a me abandonar. Sinto um enorme cansaço como se meu corpo fosse de um peso insuportável. Minha visão meio turva me lança numa atmosfera fantasmagórica, parecida com o momento que antecede ao sono, quando o corpo ainda não adormeceu, mas também não está acordado. Vejo apenas uma névoa colorida e de dentro dela emergir anéis luminescentes. Das patas de Olho Esquerdo saltam faíscas. Ele olha para minha cara derretida pelo abatimento e uiva. Quase consigo distinguir algum significado dos sons por ele emitidos. Quase. Tenho uma palavra na ponta da língua, rolo as vogais de um lado para o outro dentro da boca, mas não consigo a expelir. Os círculos luminosos se tornam maiores e mais frágeis. Mal ganham corpo e logo se desfazem em pequenos pontos parecidos com minúsculos vagalumes que se projetam em direção ao buraco que está se formando no acento do sofá. Já não aguento meu próprio peso e sou obrigado a escorar as costas na parede. Mesmo assim ainda é demais para mim. Escorrego lentamente até tocar o piso gelado com minha bunda. De alguma maneira muito estranha os uivos do animal se convertem em raios parecidos com fogos de artifício. Na televisão, a voz do apresentador é estrondosa e apenas com muita dificuldade consigo distingui-la dos trovões.   

Um floco de espuma amarela salta direto do abdômen do sofá para dentro da minha boca. Ele tem gosto de areia de gato mijada. Não que eu já tenha experimentado areia, muito menos urina felina. Mas suponho que sejam parecidas com isto que tenho dentro da boca. O mais estranho é que não demora muito para eu me habituar ao gosto meio ácido. Exploro um pouco mais o naco, fazendo movimentos com a língua. Nem me dou conta e já estou mastigando. Instantes depois ele desce pela garganta.  

Dois terços do corpo de Olho Esquerdo já estão dentro do buraco. Eu, por minha vez, não consigo expressar nenhuma reação. Tudo parece se encaminhar para uma batalha já perdida desde o começo. Pelo menos de minha parte. Nunca tive muita autoridade em minha vida como um todo, algo que se evidencia com mais força agora, na disputa com o animal, na forma como ele ignora meus apelos. O cheiro de comida queimada ainda se faz sentir por toda a casa, funcionando como um elemento atordoante extra. Sinto um odor de carne sapecada vindo de Olho Esquerdo. A parte do animal ainda descoberta se movimenta à maneira da rocha quando transformada em magma. Suas patas atacam e se debatem numa ferocidade pastosa. Por isso – pelo menos daqui onde estou reduzido à massa imóvel de meu corpo – o sofá já não me parece um móvel estofado para que se possa sentar, mas sim um pequeno vulcão.

A voz do apresentador já não vem da televisão ou de qualquer outro aparelho eletrônico. Até porque todo o apartamento começa a derreter. E as palavras do homem se confundem com a luz emitida pelas patas de Olho Esquerdo. Parte da realidade – disso que antes eu podia tocar ou onde podia me agarrar para sustentar meu peso excessivo – está sendo reduzida a uma matéria gelatinosa. O restante, mesmo o som, transformado em luzes incandescentes. Ou em formas híbridas e indescritíveis.

O pior de tudo é que, apesar dessas imagens inconcebíveis, contínuo com a consciência intacta. Enquanto assisto a esse pesadelo, me questiono sobre a possibilidade de ter sido, por algum motivo e por alguém que desconheço, drogado ou de estar enlouquecendo. A segunda hipótese seria ainda mais curiosa: a de alguém que, ao enlouquecer, sabe perfeitamente que está enlouquecendo.

Mesmo assim, em meio à liquefação de tudo, quando aguço a audição um pouco mais, capto a voz do apresentador começando a soar diferente, se é que se pode considerar esse grunhido uma voz. Fato que se dá quase simultanemante com o desaparecimento completo de Olho Esquerdo dentro do buraco por ele cavado no acento do sofá. De onde estou, sem conseguir mover um músculo sequer, consigo ver apenas uma auréola avermelhada que se projeta de dentro da abertura.

Porém não me dou por vencido, acerto três bofetões na minha própria cara, busco aquela gota final de energia e arrasto meu corpo pesado, mais pesado do que o normal, até a porta que separa a cozinha da sala. As coisas parecem estar voltando ao normal, retomando sua solidez. A televisão é o único objeto que insiste na excentricidade. Dentro dela, a imagem dos policiais em volta dos carros com o giroflex piscando e a figura do apresentador tomado pela cólera se revezam. Ele fala com tanta raiva que até parece que de vez em quando a TV sacode. Por isso paro onde estou, num nível um pouco mais baixo do que o da bancada que a acomoda, e observo com um pouco mais de atenção.

Sua voz soa como o rosnado de um animal. As palavras, que deveriam formar frases, são entrecortadas por sons cavernosos. Pelo tom consigo perceber que a raiva ainda continua lá apesar de eu não entender quase nada do que está falando. “Polícia, gruaaa, matar gruooo, direitos humanos, graooo”, tudo entrecortado como se estivesse assistindo a um programa transmitido numa língua que não domino muito bem. Por isso capto apenas fragmentos de informação e tento interpretá-los em combinação com a expressão corporal do sujeito. O que não ajuda muito.  

No entanto a fúria do homem parece só aumentar. A tela está dividida em duas partes. Numa delas as imagens externas mostram a cena de algum crime, na outra o apresentador já nem esboça o mínimo esforço em comentar o que está acontecendo. Lembra mais um animal enjaulado, se debatendo e tentando escapar do zoológico. Parece um urso, porque é gordo, barbudo e do colarinho da camisa um pouco aberto escapam espessos tufos de pelo muito preto. A barriga, que pressiona os botões do paletó, produz ondulações. Ele vocifera e baba pelo canto da boca. A coisa pelo visto ficou um pouco mais séria, porque sem se dar conta de que está sendo visto, ou sabendo e não dando bola pra isso, alguém, provavelmente uma pessoa da produção, tenta falar com ele e gesticula como se estivesse empenhada em convencê-lo a abandonar o programa. O apresentador está hipnotizado por sua própria raiva e não consegue prestar atenção em nada à sua volta. Pra falar a verdade, parece não perceber nem mesmo a reportagem que deveria estar comentando e que desencadeou seu acesso de fúria.

Já não escuto o barulho de chuva lá fora. Por isso presumo que ela tenha parado. Além disso, sem nenhuma explicação, assim como se foi, minha energia começa a voltar à normalidade, principalmente às minhas pernas. Fico de pé sem nenhum problema. Até mesmo a imagem das coisas à minha volta se normaliza. Cada coisa se encontra agora estável, no seu devido lugar e com sua devida consistência.

Apenas o sofá continua com o acento esburacado, e olho esquerdo desaparecido. Mas não apenas isso. Na televisão o apresentador, com a parte de cima de sua roupa toda aberta, é contido por uma meia dúzia de pessoas enquanto solta gritos assustadores. Consigo ver seu ventre ondulando. Então me dou conta de que seus gritos talvez já nem sejam de raiva e tenham passado a expressar dor e desespero. Ele está deitado no chão, de barriga pra cima. A quantidade de pessoas à sua volta aumenta significativamente. Lutam para mantê-lo deitado, segurando seus braços e suas pernas. Ele rosna e tenta morder todo mundo. Quase não possuo ângulo de visão, porque está tapado pelos corpos das outras pessoas. Porém vejo um pouco de seus pés, um deles sem sapato, e a barriga peluda que não para de se mexer. Apesar da cena grotesca, o programa não é interrompido, provavelmente porque construiu uma trajetória baseada em bizarrices e sensacionalismo. Então algo me diz que a audiência deve estar ótima.

Alguma coisa acontece. Todos se afastaram do sujeito e o deixam se contorcendo sozinho no centro do estúdio. Ele estrebucha, arranca tufos de cabelo e o resto de sua roupa. Está nu, todo mijado e cagado. Rolando em cima de seus próprios dejetos. Arqueja o ventre num ângulo de 30 graus antes do grande final. Uma parte pessoas grita enquanto a outra vomita. Os mais sensíveis saem correndo. A barriga do homem simplesmente se rasga ao meio e esguicha sangue pra todo lado. Eu, aqui da minha casa, nem consigo acreditar. Do meio das vísceras do sujeito pula Olho Esquerdo e vai em direção a alguns dos presentes, que apavorados dão no pé. Mal sabem eles que Olho esquerdo é inofensivo.                         

 

    

 

 

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