... de um azul muito denso, o céu
parece uma interminável lagoa de chumbo – num mundo virado de pernas para o ar
– prestes a transbordar, ultrapassando os diques formados por edifícios: apenas
mais uma gota já seria o suficiente. Mas não há gota excedente, e ele continua
irredutivelmente parado, como bloco pesado de chumbo suspenso sobre nossas
cabeças. Nem mesmo a brisa morna da primavera consegue produzir algum
movimento.
Sigo sem pressa pela Avenida
Cristóvão Colombo, observo a paisagem com seus objetos e seres em circulação. Procuro
por um rosto amistoso em meio à torrente anônima que escorre pelas calçadas, um
rosto humano que irradie alguma humanidade.

Todos parecem, no entanto, maquinais.
Seus olhos apontam inflexivelmente para o horizonte, para o nada-além. Ninguém
olha para o lado, muito menos nos olhos dos outros (lembro-me de ter ouvido, em
algum lugar, que eles são espelhos da alma). O olhar fixa-se ao fim, o caminho
é apenas um meio. Esses corpos locomotores são precisos, não se chocam. Eu, por
outro lado, procuro por um andar vacilante.
Já faz algum tempo, tornou-se
quase impossível de se distinguir, dentre todos esses aí, quem de fato está de
corpo presente de quem está (ou não está) de corpo ausente – quem realmente é
de quem já não é e não passa de um espectro incorpóreo.
No início todo mundo achou ótimo o
fato de não precisar sair de casa para a realização das tarefas cotidianas. No lugar de si mesmos quase todos passaram a
enviar seus hologramas, batizados de Anima pela empresa responsável por sua
criação.
Contudo, depois de algum tempo, alguns
efeitos não previstos e sobretudo indesejados começaram a aparecer. Num
primeiro momento – enquanto houve possibilidade – eles foram omitidos,
posteriormente negados, até que a verdade se impusesse de maneira categórica.
Os usuários da nova tecnologia
gradativamente deixaram de sair de casa com seu corpo físico e começaram a
passar – por um período demasiado longo – conectados à central de comando,
alimentando-se da pior comida industrializada: a mais abundante e de fácil
acesso no mercado. Não demorou muito para começarem a engordar e acumular
problemas de saúde decorrentes de uma vida vegetativa.
Os jornais levaram ainda algum
tempo para noticiar a gradativa, porém rápida, metamorfose social que se
disseminou como uma espécie de epidemia. Indivíduos, cada vez mais isolados,
começaram a morrer por causa de problemas relacionados à obesidade – numa
grande quantidade de casos mórbida. E não foram poucos os cadáveres que tiveram
de ser rebocados por um guindaste.
Como se tudo isso já não fosse
bastante grave, constatou-se após o início das mortes um fenômeno macabro: ao
morrerem durante o uso da Anima, algumas pessoas ainda percorriam a cidade
durante horas. Houve relatos de Animas que se locomoveram por mais de vinte e
quatro horas sem saber que seu corpo físico já não possuía nenhuma vida –
apenas uma consciência vagante.
Ninguém pareceu ligar. E tudo flui
harmoniosamente como uma orquestra. Falta, porém, alguma dissonância ou
desafinação que humanize essa sincronia quase perfeita. As ruas estão sempre limpas,
nada fora do lugar, por todo lado há beleza, uma lisura minimalista e artificial
– limpeza, organização e ascetismo tornaram-se pilares da organização social.
O vento balança a copa das
árvores, mas é como se eu não pudesse senti-lo. A sujeição, ainda que
voluntária, à planificação da vida em grupo parece ter anestesiado os sentidos
de todos. Nesta avenida movimentada, não é preciso olhar no rosto de ninguém, e
ninguém olha mesmo. Basta seguir a sinalização de trânsito destinada a
automóveis e pedestres.
Há muito tempo já não são
registrados acidentes. Todos respeitam os sinais visuais e sonoros que orientam
a direção, a parada e a velocidade a serem empregados na locomoção. O convívio
e a divisão do espaço entre humanos e máquinas adquiriu um caráter burocratizado
e aparentemente seguro.
Os automóveis ainda não voam, e os
androides com aparência humana não andam entre nós. As máquinas realizam a
maior parte dos trabalhos, é verdade, entretanto em determinado momento de seu
desenvolvimento as pessoas envolvidas acharam melhor que sua aparência seguisse
outro rumo.
O futuro-Blade Runner não se
realizou. Ou talvez tenha se realizado de maneira inversa: com os humanos
aproximando-se cada vez mais de uma aparência e um comportamento maquinal.
Às vezes parece um tanto inverossímil
a velocidade com que a tecnologia e as relações sociais evoluíram (nem sei se
evolução é a palavra mais apropriada). Mas somente quando a tecnologia permitiu
que os hologramas saíssem às ruas no lugar dos indivíduos, que de suas casas os
controlavam, a revolução havia realmente iniciado. E a partir de então o mundo
nunca mais seria o mesmo.
Durante a terceira guerra mundial,
envolvendo principalmente EUA e Coréia do Norte, os soldados norte-americanos
já não precisaram arriscar suas vidas nos campos de batalha. Foram enviados
seus hologramas, controlados em segurança a partir de bases localizadas em seu
país. A vitória foi arrasadora. A partir de então tal tecnologia se
popularizou, invadindo o cotidiano de maneira inimaginável e irreversível.
Agora, enquanto ando por estas
ruas, onde espectros digitais e biológicos habitam e confundem-se, tenho a
impressão de que eles sempre estiveram por aqui e de que, de alguma maneira,
sempre fomos fantasmas.
A origem de tal tecnologia pode
ser situada, sem muita precisão, entre as últimas décadas do século XX e as
primeiras do século XXI, quando aquilo que foi chamado de “realidade aumentada”
começou a dar os primeiros passos.
Inicialmente apenas como mais uma
inocente novidade tecnológica; rapidamente, entretanto, obteve enorme sucesso
ao ser incorporada aos jogos eletrônicos desenvolvidos para smartphones. Essa foi uma das aplicações que deram início à
interação entre o mundo virtual e o mundo físico. Hoje pode parecer um tanto
rudimentar, mas à época de seu desenvolvimento significou uma espantosa
novidade: a possibilidade de seres humanos reais circularem pela cidade caçando
monstrinhos virtuais e interagindo com o ambiente físico capturado pela tela de
seus telefones.
Obviamente quase ninguém tem
conhecimento desse tempo que parece tão distante e quase irreal. Hoje, às
portas do século XXII, a tecnologia parece algo intrínseco à condição humana, fruto
de uma linha evolutiva que talvez parta da descoberta do fogo, passando pela
invenção da roda, da máquina a vapor até chegar à informática. Ninguém imaginaria que o que parecia definir
a condição humana também seria o software de sua desumanização.
Bizzz... Bizzz... Uma mutuca faz
vários voos rasantes muito próximos ao meu ouvido. Tenho de me esquivar para
conseguir me livrar das insistentes investidas, fazendo um movimento de corpo semelhante
ao de um boxeador. Um boxeador ridículo. Do outro lado da avenida uma mulher me
observa e ri discretamente da cena cômica durante alguns segundos. Ela é baixa
e corpulenta, pode-se dizer que se encontra dentro do padrão contemporâneo de
moda. É puxada por um cãozinho muito elétrico. A guia magnética permite que o
animal se afaste alguns metros. Ao perceber algum risco, com muita
tranquilidade e sem nenhum esforço, a mulher puxa-o novamente, para uma
distância segura, através da força invisível que o mantém preso. O tom
acastanhado de sua roupa mimetiza a pelagem do animal de estimação, tanto na
cor quanto na textura. Além disso, o tecido aparenta possuir fibras macias que
ondulam ao movimento. O traje é de uma sobriedade indefectível. Alheio a
etiquetas, o cãozinho, por sua vez, evacua próximo ao meio-fio, e sua condutora
imediatamente saca da bolsa o aspirador utilizado para a higiene em tais situações.
Ao se abaixar para juntar os
dejetos, não se dá conta do carro que está saindo de uma garagem justamente ali
onde – por estar atrás de uma árvore – ela encontra-se numa posição de difícil
visualização por parte do motorista. O condutor, sem perceber nenhum risco,
acelera o automóvel. Nesse momento grito e gesticulo, tentando chamar a atenção
da mulher agachada. Ela olha em minha
direção, mas não entende o que estou gritando. Levanta-se e dá um passo para
trás. O suficiente para colocá-la no caminho do automóvel que lhe atinge com
tudo. Assustada, sua imagem se distorce, liquefaz e volta ao normal. O
cãozinho, contudo, está agora junto à sarjeta, com a cabeça esmagada e os
miolos à mostra, alguns pedaços foram arremessados ao meio da rua e seguem
agora, não sabemos para onde, nos pneus dos carros que passam. Não ficarei para
ver o desenrolar dos acontecimentos. Para mim já é o bastante.
Alguns minutos e metros à frente,
passo pelo viaduto da conceição, não vejo pobreza – pessoas dormindo sob o cimento
cinzento e frio como ouvi em histórias sobre o passado. Apenas a limpeza, o aço
e o concreto armado destacam-se na paisagem.
No centro da cidade lotado, pessoas
de carne e osso e virtuais misturam-se, sem que possamos distingui-las. Não é
permitido o toque em estranhos sem autorização, além disto, as penas são muito
duras para quem infringe esta norma – daí a dificuldade na identificação da veracidade
dos corpos por que passo. A liberdade individual e principalmente o direito à
solidão – a uma vida individualista – passaram a ser protegidos com muita
veemência pelo direito civil. Acrescentemos a isso o fato de a vida encontrar-se
agora permeada por aplicativos para as tarefas mais simples, tudo passou a ser
comandado por um algoritmo eficiente e frio. Tudo converge para o isolamento
dos indivíduos.
Os índices de natalidade têm caído
drasticamente, bem como o número de casamentos ou uniões estáveis. Todos
parecem estar procurando respostas a sua solidão em outros lugares:
aplicativos, jogos ou mesmo em outros indivíduos – de maneira virtual.
Eu não me contento, estou cansado,
com os sentidos mutilados pela obliteração tecnológica. E se eu tropeçasse e ao
cair me agarrasse ao pescoço do passante mais próximo? Eu cairia ou seria
preso? Pelo menos talvez sentisse o calor natural da pele humana outra vez,
mesmo que de uma forma breve. E aqui no centro há tanta gente.
O Mercado Público talvez seja um
bom lugar, um lugar tradicional. Ele continua praticamente igual, os avanços
tecnológicos pelo menos parecem não ter afetado sua aparência. A última
mudança, lembro-me de ter lido num jornal alguns anos atrás, consistiu na troca
dos materiais de sua estrutura que ainda fossem inflamáveis. Mas isso em nada
alterou sua imagem, nem sua função. O cheiro de peixe continua a predominar
pela manhã, os açougues exibem cabeças de porco em seus freezers e o Bará do
Mercado continua ali, enterrado em seu centro.
As pessoas passam apressadas como
se todas elas estivessem atrasadas para algum compromisso. Os rostos são
anônimos e indiferentes – alguns entediados. Mesmo assim, ao longe, parado em
frente a uma velha banca de revistas avisto um semblante conhecido. É meu amigo
André. Já faz muitos anos que não nos falamos; seu rosto, no entanto, é
inconfundível. Meu primeiro impulso é o de me aproximar, apertar-lhe a mão e
dar-lhe um abraço. Exito por alguns instantes, porém. A decepção seria enorme
se ele não estivesse de corpo presente, se em seu lugar estivesse passeando sua
Anima.
Antes de eu decidir se vou até lá
ou fujo, ele me vê e vem em minha direção com um sorriso amigável. Também vou ao
seu encontro. Caminho alguns poucos metros, e neste momento tudo se torna
escuro... Ouço um zumbido semelhante ao de um antigo rádio fora do ar... As
imagens retornam, André está em minha frente gesticulando e falando algo que
não consigo entender por causa do zumbido. Suas mãos parecem atravessar meu
corpo... Tudo fica escuro novamente e, além do zumbido, sinto uma ondulação que
lembra água em movimento, não em meu corpo, mas sim no escuro que parece
rodopiar... As imagens voltam uma vez mais, André parece ter desistido do
contato e afasta-se cabisbaixo... De repente o zumbido cessa, e a escuridão
retorna, agora silenciosa... Ela parece permanente... Até o momento em que
mesmo a escuridão... ...
LUIZ CARLOS QUIRINO