terça-feira, 26 de junho de 2018

Atrás da porta


O Veredicto dessa vez  seria no quinto andar, o andar mais alto.   Foi pelas escadas, evitando encontros inesperados na intimidade estranha dos elevadores.  Quando trabalhou ali, tentando fazer a justiça ser justa, todos e todas queriam se aproximar com beijinhos. Mas agora não se aproximariam mais, Ela sabia do seu destino.  Estava ali porque é melhor  ir até o fim dos caminhos. As pernas não queriam, mas foram se arrastando puxadas pelo coração que ia à frente.  Bateu na porta do quinto andar. A porta se abriu sozinha. Atrás da porta, um porteiro cochilava. Ela o acordou para o necessário diálogo.
- Bom dia senhor porteiro, tenho uma reunião com o Juiz Superior.
Abrindo os olhos como se acordasse na tumba, da boca do porteiro saiu o  hálito quente com lentas e indiferentes palavras. 
- Ah, a senhora deseja ainda falar com o Juiz?
- Desejar não desejo, senhor, mas vim pegar o Veredicto.  
- O Juiz Superior não está minha senhora. Se tem horário marcado com ele, não sei o que fazer, nem sei mesmo porque ainda estou aqui, tudo agora é digital. Vou perguntar à Grande Secretária Eletrônica  que sabe tudo e saberá também como proceder nesse caso encrencado. Pode se sentar e aguardar.  
No confortável sofá importado da Inglaterra com almofadas bordadas com esmero na Polônia, Ela esperou olhando pela última vez, Ela sabia que seria a última, ficou olhando as paredes coberta pelos gobelinos estampados com os reis da França.  Olhava de vez em quando o velho  porteiro que a olhava de esguelho com seus óculos embaçados de quem ganha pouco salário mas tem que usar gravata dourada listrada de prata para cochilar.  
Uma voz metálica de repente falou pelas paredes:
- Dirija-se à sala 508, um Juiz Não Tão Superior está atrás da porta.
Abriu a porta onde uma placa indicava 508. Não havia ninguém, somente uma gigante tela de três faces que começou a falar.
- A senhora, ah sim, a senhora quer saber do Veredicto. Está na memória.  A rua decidiu o Veredicto do Processo e  a Justiça reiterou, a senhora foi condenada  por usar em demasia a justiça para  fazer justiça.  Pronto, é esse o Veredicto. Agora, por favor, retire-se.
Apesar de ser uma tela, Ela insistiu.  
- Senhor Juiz Não Tão Superior de três faces, a metade da rua não me condenou.
Apesar de ser uma tela, retrucou.
- Esse lado da rua que não te condenou, a tela desconhece, não tendo memória para arquivos que não interessam.
Apesar de ser uma tela, Ela gritou.
- Mas eu tentei fazer Justiça. E agora o que vou fazer da minha vida?
Apesar de ser uma tela, respondeu.
- Quem faz justiça justa, vira barata. Se quiser chegar à rua, vá pelo boeiro pois não há mais portas aqui para a senhora atravessar. É o seu fim.    
Mais uma vez Ela desobedeceu às telas. Virou um escaravelho. Fez três bolinhas de merda e jogou nas três faces da tela. Fez outra bolinha, agarrou-se nela e foi rolando escadas abaixo até o Grande Jardim da rua. Procriando filhotes na merda, entre flores e pedras, cantou por 12 anos  com o fio afiado da língua dos insetos a Canção da Esperança nos Homens.  

SP - 30.01.2018

Marta Rezende | economista, consultora em projetos e produções culturais.


Um comentário:

  1. Muito grata pela publicação desse primeiro conto de uma série que venho escrevendo. Parabéns pelo blog. E vamos de literatura , mais importante que viver é a literatura.

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