domingo, 5 de julho de 2020

thoth

Por detrás de minha cortina observo o vizinho colocando seu lixo para fora. Mal consegue se manter de pé com o peso do enorme saco de plástico preto... Dizem que participou de alguma das guerras. Não sei direito qual delas. Não importa. Já que hoje é apenas um ser que se distingue pela fragilidade, visível em seus braços flácidos e nas veias azuladas e salientes. O nariz e as orelhas enormes lembram bifes pendurados em seu rosto como adornos grotescos oferecidos pelo tempo. Ele vive sozinho na casa outrora  imponente, hoje apenas velha. Parece que após ter matado alguns homens na guerra passou o restante de sua vida, antes da aposentadoria, ensinando literatura a adolescentes numa escola pública... Mal consegue se manter de pé. Ainda mais numa rua tão escura e sem iluminação. Alguns poucos pontos fazem-se visíveis, muito precariamente, graças à luz que escapa de uma janela ou outra. Ele joga o saco na calçada. Não me fica claro se por impaciência, raiva ou pelo peso. Sua expressão, entretanto, é uma mistura de cansaço e indiferença. Então estou inclinado a supor que o peso fora demais para seus braços magros. Com a queda o saco se abriu parcialmente. O velho parece não se importar. Olha em direção à minha casa e, apesar da escuridão, tenho certeza de que me viu entre as cortinas. Sua porta bate com uma força incompatível com sua figura. Fico mais alguns minutos observando a rua, já que meus olhos tiveram tempo de se acostumarem à penumbra. Um cão magricelo se aproxima do lixo e aproveita o fato do saco estar meio aberto. Enfia o focinho à procura de algum alimento. Dá umas cheiradas e puxa algo de dentro. O objeto cai de sua boca. Não sei se por causa da escuridão ou da distância encontro, mas posso jurar que o que o cachorro abocanhou dentro do lixo do velho era um dedo, parecido com uma salsicha arrochada. Ele o pega novamente. Sai saltitando em direção ao beco e desaparece.            


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